SlideShow

.
0

A ORIGEM:SINAPSES ENTRE NEURÔNIOS E ADRENALINA

"Quando consigo aplacar minha sede,
 sonhando que estou bebendo, não preciso despertar-me para saciá-la"
-A Interpretação dos Sonhos
-Sigmund Freud
 
 "Total Recall", "O Exterminador do Futuro", "Akira", "Matrix", "Zona Verde"... Pode ter a certeza de que a lista de filmes de ação inteligentes, isto é, que possuam como pano de fundo para perseguições, lutas insanas, efeitos visuais deslumbrantes e jorros de de adrenalina e testosterona, roteiros que lidem em maior profundidade com temas relevantes como política, tecnologia, matemática, física, filosofia, etc, não se estende muito além dos citados acima.
  Pode-se dizer que surgem um ou dois a cada década, são como ouro e pedras preciosas achadas no garimpo após (as vezes dias) de garimpagem inútil, aonde a única coisa que se encontra é areia e terra áridas e descartáveis.
  Súbito, um novo metal suntuoso é descoberto pelo garimpeiro (leia-se o fã de cinema), para engrossar mais um pouco a esquálida lista de "filmes de ação intelectuais" e a nova aquisição deste catálogo se chama "A Origem" (Inception).
  "A Origem" é um turbilhão eletrizante de ação e aventura ambientado no mundo mais caótico, perigoso e sinistro que existe: as profundezas da mente humana e aborda uma das questões filosóficas mais ancestrais e perturbadoras que vem dilacerando o intelecto do homem desde que este "aprendeu" a raciocinar: o que é a realidade? Qual afinal, é a diferença (se é que existe alguma), entre o sonho e a vigília?
  Perguntas estas que já foram abordadas inúmeras vezes no cinema, literatura e outras formas de expressões artísticas.
 Ao contrário de "13°Andar" e "Matrix", que usavam a informática e a realidade virtual como metáfora para discutirem sobre o "Mito da Caverna" de Platão, "A Origem" ataca o problema mais de frente, dissecando este complexíssimo tema existencialista em uma configuração mais crua e primitiva.
 Como era de se esperar de uma obra que debate um assunto tão obscuro quanto este, "inception" possui um roteiro emaranhadíssimo, impossível de explanar em poucas linhas, ou até mesmo em poucas páginas.
  Basta dizer que o texto é tão bem elaborado, construído por meio de uma engenharia tão precisa e delicada quanto a de um relógio suíço, que se tem a impressão de que se for retirada uma única e misúscula peça  (ou se o espectador desviar a sua atenção do filme por um único segundo sequer), todo o magnificente maquinário que é o roteiro do longa vai desabar sobre si mesmo.
  A espinha dorsal do mirabolante e genial roteiro engendrado por Cristopher Nolan (também diretor do filme) é sobre um grupo de golpistas de alto nível liderados por Don Cobb (Leonardo di Caprio, que atuando nos filmes de Scorsese aprendeu definitivamente a arte da interpretação), que praticam espionagem industrial através de métodos psíquicos e metafísicos em que invadem os sonhos de indivíduos e lhes roubam seus segredos mais bem guardados no fundo de suas psiques.
  Desde as primeiras cenas o espectador é jogado no meio da desordem espetacular do universo onírico, aonde os herméticos tratados de Carl Gustav Jung, Freund e outros estudiosos da mente/cérebro do homem, são abordados, discutidos e explicados, não por meio de diálogos e palavras, mas sim por um caos de sequências de ação ininterruptas e gradualmente radicais, protagonizadas não por intelectuais sensíveis encerrados em ambientes acadêmicos, mas por homens brutos e implacáveis que parecem terem saído de um livro hard-boiled de Dashiell Hammet, indivíduos inteligentes sem dúvida, mas acima de tudo homens de ação, das ruas, junkies de adrenalina, caçadores da morte.
  Seguindo a tendência imposta pelos mestres contemporâneos do cinema de ficção imaginativa como Peter Jackson, Neill Blonkemp e Guillermo del Toro, Cristopher Nolan faz em "A Origem" o realismo sempre caminhar lado a lado com a fantasia, mesmo nos momentos mais tresloucados desta e sempre questionando implacavelmente o espectador até os últimos minutos de exibição sobre o torturante enigma (que perpassa todo o longa) da dualidade entre o "estar sonhando" e o "estar acordado" Seriam estes dois princípios realmente opostos, ou apenas as duas faces de uma mesma moeda?
  Encabeçado por Di Caprio, o filme possui um elenco tão homogêneo, que parece não existirem papéis coadjuvantes, pois até mesmo estes são personagens extremamente ricos, sempre possuindo importância fundamental para o desenvolvimento do ,enredo.
  Mesmo assim, se pode destacar Ellen Paige, (que interpreta uma interessante variação moderna da personagem da mitologia grega Ariadne), Joseph Gordon-Levitt (alternando momentos de interpretação contida e introspectiva com outros de ação extrema e explosiva)  e Cillian Murphy, que consegue transmitir toda a agonia e desorientação sofrida pelo seu personagem.
  Já o lado técnico do filme parece estar o tempo todo querendo disputar com o roteiro, para ver qual dos dois merece mais adjetivos superlativos como "brilhante", e "perfeito".
  Efeitos digitais, efitos físicos, iluminação, cenografia, make-up...., tudo parece tão espetacularmente bem feito e de ter sido tão difícil de se fazer quanto o texto do longa.
  Algumas cenas de "A Origem" como a da cidade que se dobra sobre si mesma, lutas em gravidade zero e uma locomotiva desgovernada invadindo uma rua movimentada, possuem um impacto visual tão poderoso e inesquecível quanto o gigantesco destróier da sequência inicial de "Uma Nova Esperança", o arranha-céus em chamas no clímax de "Duro de Matar" ou as pancadarias marciais da trilogia "Matrix".
  Porém o que mais chama a atenção em "A Origem" é a sua montagem.
  A edição de imagens é exata e complexa como uma equação matemática, fazendo com que as infinitas seqências de ação (que se passam paralelamente em tempos e espaços distintos) se encaixem umas nas outras com tamanha precisão cirúrgica, que parecem estarem "falando", "explicando" para o espectador as difíceis questões sobre psicologia, neurologia, física, filosofia e química abordadas pelo filme.
  Isso se deve ao fato de o cineasta inglês Cristopher Nolan ser um adepto da "mesma escola" de montagem intrincada de Akira Kurosawa, Jean Luc-Godard e Quentin Tarantino. Diretores para quem a edição é uma arte , uma requintada forma de se contar uma história, devendo ser sempre tão surpreendente e tão bem trabalhada quanto o próprio roteiro do filme e não apenas um "canal"para irem se aglutinando imagem atrás de imagem em uma burocrática linha reta.
  Quase todos os longas de Nolam seguem esta tendência de narrativa embaralhada, fragmentada, de flash-backs no interior de flash-backs, formando um atordoante quebra-cabeças que fica martelando nos neurônios do espectador e que este, geralmente, só conseguirá montar horas após o filme ter acabado.
  Porém, esta não é a única qualidade de seus filmes.
  Seus roteiros são, na maioria das vezes, enigmáticos, thrillers desafiadoramente cerebrais, com personagens de natureza ambígua, perturbados, obcecados, dilacerados por traumas violentos e protagonizando cenas de ação eletrizantes e realistas.
  Vem sendo assim desde o obscuro cult "Following", a estréia de Cristopher nos cinemas em 1998 e que conta a ímpar história de um aspirante a escritor, que seguepessoas pelas ruas observando seus modos de vida, com o intuito de buscar inspiração para seus livros.
 Já em "Amnésia" (Memento) de 2001 (que tornou o cineasta internacionalmente famoso), Nolan constrói uma das narrativas cinematográficas mais audaciosas de todos os tempos, ao editar de marcha-a-ré literalmente e do início ao fim, uma trama noir de assassinato.
  Embora a sua obra seguinte "Insônia" (Insomnia), lançado em 2002 possua um formato mais convencional, ainda consegue arrebatar e perturbar o espectador com uma trama incômoda, além de oferecer interpretações viscerais de todo o cast.
  Com o sucesso estrondoso de "Batman Begins" em 2005, Nolan começou a ganhar carta branca das majors americanas para desenvolver os projetos que quisesse, graças a visão ultraverossímil que imprimiu ao mítico homem-morcego, que neste longa, após inúmeras tentativas fracassadas, conseguiu finalmente levar para as telas toda a insanidade, truculência e realismo das clássicas HQs que Frank Miller e Allan Moore perpetraram nos anos 80.
  Contrariando as expectativas de quem esperava que o cineasta usasse o seu recém-adquirido prestígio em Hollywood, para realizar apenas super-produções milionárias de ação e aventura com retorno financeiro garantido, Cristopher Nolan surpreende mais uma vez com o complicadíssimo "O Grande Truque" (The Prestige), um supense de época sombrio com um roteiro tão intrincado e salpicado com tantas reviravoltas inacreditáveis, que é praticamente impossível digerirn por completo a sua trama assistindo-o apenas uma única vez.  Dois anos depois , com  "O Cavaleiro das Trevas" (The Dark Knight), continuação de "Batman Begins", o cineasta supera mais um desafio, demonstrando que uma continuação pode sim, ser superior (no caso específico de "O Cavaleiro das Tevas", muito superior) que o original. Outra coisa tão rara de se ver no mundo do cinema quanto um "filme de ação inteligente".
  Agora, com "A Origem", Cristopher Nolan atinge o pináculo de sua carreira, com uma obra arrebatadora em praticamente todos os sentidos e que o consaagra definitivamente como um novo mestre da linguagem cinematográfica. Inserindo-o dentro do distinto grupo de cineastas que ainda mantém viva a centelha de criatividade, inteligência e ousadia em Hollywood, que de resto é uma mera indústria de produtos pasteurizados para consumo de massa.
  Agora só nos resta torcer para que nas décadas vindouras, o cinema continue tendo a sorte de ver surgirem cineastas como Cristopher Nolan, Darren Aranofski, David Fincher, etc.
  Em último caso, nem que seja apenas em nossos sonhos.

"Até que um dia conheceu, pela primeira vez,
o verdadeiro dono de um sonho que ele, o Pirata, tinha sonhado."

- O Arco-Íris da Gravidade
- Thomas Pynchon
  
 









-