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Homo Vampiricus

 Um dos mais antigos registros do mito do vampiro de que se tem notícia vem da Grécia antiga do ano de 405 A.C. Mas sabe-se lá o quão mais profundo é o abismo do passado remoto de onde tenha realmente surgido esta aterradora lenda.
 Pessoalmente, acredito que este monstro esteja conosco desde o alvorecer das primeiras mitologias que assombraram os antepassados do homem com seus deuses e demônios primitivos e selvagens. Um arquétipo sinistro que está entranhado em nosso sistema nervoso desde os tempos pré-Homo-sapiens de Pitecantropos e Plesiantropos e que vem, desde então, servindo de metáfora para os nossos mais violentos e proibidos estímulos carnais.
  O sadomasoquismo e o sexo sangrento (uma parafilia que muitos tem ou que gostariam de experimentar mas tem medo e vergonha de admitir), talvez esteja ligado ao mito do vampiro e as práticas canibalísticas (que por sua vez é a raíz do vampirismo) que eram rituais comuns em sociedades pré-históricas.
 Práticas e rituais estes que muito provavelmente ficaram gravados até hoje naquilo que Carl Gustav Jung denomina de nosso inconsciente coletivo e que mesmo atualmente em nossa sociedade moderna alguns de nós ainda possuem um desejo doentio de exercê-los de formas disfarçadas, como o prazer  de provocar e sentir dor do sadomasoquismo.
 Infelizmente, como eu já havia comentado em uma postagen anterior neste blog, o medo, os monstros e o horror são coisas que tendem a irem definhando com o tempo (da mesma forma, como sugerem alguns escritores de livros de horror, que o sangue vampírico vai afinando ao passar de uma geração para outra no decorrer dos séculos), se diluindo no interior das entranhas das ramificações mais banais da cultura pop como um lindo pedaço de carne fresca e crua que vai se manufaturando progressivamente até se transformar em um inocente e insípido hambúrguer do McDonalds.
 Contudo se no (infelizmente) quase onipresente cinema hollywoodiano o sangue do cinema fantástico vem se tornando cada vez mais anêmico o mesmo não se pode dizer das hemáceas que correm no interior das veias dos filmes de horror e ficção científica asiáticos.
  E é da Coréia do Sul (país que vem gerando alguns dos filmes mais potentes e turbinados do cinema recente) que veio "Sede de Sangue" (Thirst), produção que devolve o vampiro as suas origens monstruosas e profundamente perturbadoras.
 Comandado com pulso de aço por Park Chan-Wook (um cineasta que a tempos já dispensa apresentações para os cinéfilos mais exigentes), "Thirst" é um verdadeiro banho de sangue tanto físico quanto psíquico.
 Wook já começa a acertar quando manda para o inferno quase todos os clichês habituais que vem poluindo e as vezes até ridicularizando a figura do vampiro em todas as mídias através dos anos.
 De cara o diretor já demole os cânones mais ortodoxos do vampirismo ao transformar o protagonista do filme ,um padre, em um monstro sugador de sangue que mesmo após a sua bizarra mutação não abandona Deus nem as práticas do sacerdócio. A seguir Wook purifica ainda mais o tema enxugando o filme de todo e qualquer resquício de aspectos metafísicos, românticos e míticos, mostrando os vampiros por um prisma muito mais de ficção-científica hardcore (como "Alien" e os filmes de David Cronenberg) do que de horror sobrenatural. Dessa forma o cineasta sul-coreano atinge o coração e as raízes do vampirismo, que afinal de contas sempre serviu de tropo para o lado mais carnal e animalesco da personalidade humana, livre de quaisquer amarra mística, moral, religiosa, etc.
  "Sede De Sangue" faz o que todos os filmes de horror e fantasia deveriam fazer: usa os monstros fantásticos para comentar sobre os monstros reais de nosso cotidiano e nos fazerem pensar.
 Se analisado mais profundamente percebe-se que o vampirismo de "Thirst" também  serve  como pano de fundo para o diretor sul-coreano realizar um mix sublime de vários gêneros cinematográficos: drama, romance (aonde denota os aspectos mais sádicos e carnais do amor), film noir e um suspense hitchcockiano de absoluta destreza técnica e visual de tirar o fôlego.
 Ao mostrar as mais bizarras e tresloucadas fantasias amalgamadas dentro de um contexto, cenários e situações absolutamente realistas e até mesmo banais, Wook aproxima os seus vampiros dos super-heróis do mundo real criados por Allan Moore em HQs como "Miraclemen" e "Watchmen". Tanto as obras de Moore quanto esta de Wook, mostram que nada é apenas um milagre, que até mesmo os dons e poderes mais espetaculares e infinitos podem levar aqueles que os possuem ao sofrimento, a dor, a loucura e a morte. Mostra ,em suma, que o paraíso e o inferno sempre andam de mãos dadas.
 Já as interpretações de todo o elenco são tão fortes e potentes quanto o restante do filme.
. O tormento interno sofrido pelo sacerdote interpretado por Song Hang-Ho ( "Simpathy Mr. Vegeance" "O Hospedeiro"),  dilacerado entre a pureza da alma e as tentações da carne e do sangue, não perde em nada em complexidade para os personagens de Martin  Scorsese, que também são quase sempre seres estilhaçados entre o divino e o profano. O paralelo entre esta obra de Wook e as de Scorsese também se estende ao turbulento e doentio romance entre o personagem de Ho e a vampira sádica interpretada por Kim Ok-Vin.
 Mas o melhor em "Sede De Sangue" é que ele nada violentamente contra a maré da  moda vampírica que vem entupindo os meios de comunicação atualmente. Tem-se a nítida impressão que Park Chan-Wook realizou este filme justamente para poder arrancar os vampiros da condição mainstream e fashion em que estes se encontram hoje e jogá-los novamente no inferno de sangue de onde o mito do nosferatu surgiu, transformando o vampiro outra vez em um personagem de obras que possam ser consumidas por pessoas adultas, inteligentes e de imaginação ousada.