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Stanley Kubrick, O Homem Que Fazia CINEMA


Stanley Kubrick fazia CINEMA.
        A grande maioria dos demais diretores faziam, fazem e ainda vão fazer, apenas, filmes.
       Enquanto que os filmes normais não passam de decoreba didática e primária, o cinema de Kubrick é logica pura e matemática avançada.
        Como toda obra de arte, engenho visionário, experimento cientifico e tratado filosófico, seus filmes exigem, da parte de seus espectadores, anos de análises aprofundadas, debates e muito estudo, até que comecem a lhes fazerem sentido. Até que comecem a mudar, de forma radical e definitiva, não apenas a forma de as pessoas verem e entenderem o cinema, mas também a maneira destas pensarem e agirem como um todo.
         A obra de Kubrick não é para fãs de cinema. É para estudiosos e pesquisadores de cinema.
       Portanto, treze anos e umas cinco reprises depois, foram necessários para que eu começasse a compreender e a me dar conta de toda a grandiosidade, genialidade e perfeição técnica inacreditáveis do último filme de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut/EUA,1.999).
       Muito provavelmente por ser a obra derradeira do lendário cineasta, e, por conseguinte,  seu filme mais “recente”, De Olhos Bem Fechados, ainda, permanece como o trabalho mais incompreendido, misterioso e menos comentado de Kubrick.
       Em linhas gerais, Eyes Wide Shut, pode ser classificado como pertencente aos gêneros cinematográficos romance e/ou erótico.
        Entretanto, a exemplo de 2.001 e A Laranja Mecânica, que, a despeito de serem ficções-científicas eram, infinitamente, mais do que apenas naves espaciais e cenários futuristas, De Olhos Bem Fechados, igualmente, vai muito além das meras regras e clichês dos gêneros em que foi encaixado.
          Eyes Wide Shut é a versão cinematográfica daquela polissemia, tão infinita que beira a insanidade, que existe na literatura de Thomas Pynchon, James Joyce e Phillip K. Dick.
          Assistir a este filme é um, verdadeiro, desafio tanto para os olhos quanto para a mente. A exemplo dos autores literários citados acima, a primeira vez em que se assiste a De Olhos Bem Fechados o espectador fica completamente perdido e chocado com a hermética, bizarra e perturbadora trama do filme. Entretanto, como nas obra de Pynchon e Dick, você fica igualmente fascinado pelo interminável encadeamento de ideias, situações e imagens, absolutamente, singulares e extravagantes da obra.
         Mesmo depois de, geralmente, muito tempo, quando se consegue compreender, de forma parcial, a mensagem do filme, decifrá-lo em sua totalidade ainda é um desafio. Em primeiro lugar porque o espectador não sabe qual aspecto do longa lhe é mais deslumbrante, e, deseja esmiuçar primeiro, se o seu visual ou o roteiro e as interpretações. Ambos, igualmente, repletos dos mais variados significados e simbolismos.
        Dificilmente se viu na história do cinema um filme que possuísse tantas tonalidades diferentes de cores e tantos contrastes entre luzes e sombras em um único enquadramento, quanto De Olhos Bem Fechados. E, no entanto, em nenhum momento esta multicolorida e radicalmente contrastante fotografia, elaborada por Kubrick e pelo iluminador Larry Smith, se torna uma espécie de samba do crioulo doido, tampouco, apesar de usar e abusar de cores quentes, como o vermelho, confere ao filme uma aspecto alegre e alto-astral. Pelo contrário, as variadas matizes da iluminação do filme servem sempre para realçar o aspecto, gradativamente, doentio e ambíguo de sua trama e de seus personagens.
         Como costuma ocorrer com as obras cinematográficas mais célebres, a fotografia de De Olhos Bem Fechados não está lá, apenas, para trabalhar o aspecto visual do filme em si, mas também para ajudar a contar e compreender melhor o desenvolvimento de seu roteiro.
          Um exemplo disso seria a inesquecível e aterradora sequência da orgia gótica. Apesar de ser a parte mais surreal, e, sobre certo ponto de vista, a mais “fantástica” do longa, é, no entanto, a que possui a fotografia mais naturalista. Em contrapartida, as cenas mais prosaicas, como as que mostram a trivialidade do dia-a-dia do casal de protagonistas, interpretados por Tom Cruise e Nicole Kidman, respectivamente, são as, visualmente, mais estilizadas e oníricas. Dessa forma, parece que Stanley Kubrick quer nos dizer que, na verdade, são as nossas pacíficas, e, por vezes, maçantes rotinas diárias que não passam de um sonho, de uma fantasia. E que a vida de verdade é um Mundo tenebroso e alucinante, repleto de seres, situações e cenários perversos, bizarros e distorcidos.
          Outro aspecto técnico desta produção que, também, escancara a compulsão obsessiva de Stanley Kubrick para com o perfeccionismo é a direção de arte do longa. Como, já a anos, Kubrick vive recluso em um castelo na Inglaterra, as filmagens ocorreram inteiramente nos estúdios Pinewood. Portanto, a cidade de Nova Iorque, que é aonde se desenrola a história do filme, é, integralmente, cenográfica.
           Mas, nem por um único segundo sequer, as ruas, avenidas, prédios, transeuntes e automóveis que aparecem no filme nos passam a menor sensação de artificialidade.
            Todo e qualquer imóvel que apareça no longa, de uma gigantesca mansão de milionários, ao minúsculo apartamento de uma prostituta de rua são absolutamente “reais” e palpáveis, tanto externa, quanto internamente. Essa, absoluta, sensação de verossimilhança só foi possível porque Kubrick recriou uma cidade real enfatizando não apenas o seu lado bonito e perfeito, mas, principalmente, o semblante vicioso de uma grande metrópole. As ruas são sujas, os becos úmidos e sinistros. É quase possível, ao espectador, sentir o fedor do lixo nas calçadas e do ar fétido de esgoto que emana de bocas de lobo.
              E o mesmo excesso de detalhamento que é dado a uma festa nababesca em um palacete no início do filme e que dura vários minutos, também está presente em uma pequena banca de jornais e revista de rua que o personagem de Tom Cruise visita em uma funesta madrugada.
              Já o roteiro do longa é um verdadeiro labirinto tortuoso de luxúrias proibidas, paixões dilacerantes, ciúme doentio, parafilias, conspirações apavorantes, personagens dúbios e um suspense crescente que atinge as raias do insuportável. Um Mundo aonde o amor e a libido podem, a qualquer instante, se metamorfosearem em loucura e perigo e levarem a podridão e a morte.
     Acompanhar o desenvolvimento da trama exige máxima atenção, pois, qualquer detalhe, por mais sutil e insignificante que possa parecer, pode vir a ser de uma importância vital para a compreensão da história.
    Nada é o que parece ser. E um simples e sutil olhar de um personagem, pode, significar muitas, e diabólicas, coisas e mudar completamente o rumo da trama...ou não...Pois Eyes Wide Shut é um RPG no qual o espectador pode conduzir a história por centenas de caminhos e portas diferentes....Algumas portas levarão o espectador a lugares e conclusões ora tranquilas, ora confusas, ora terríveis....
   Enfim, tudo vai depender de seu intelecto, de seu conhecimento de mundo e de sua sensibilidade. Pois este filme pode ser tudo, menos uma obra de respostas fáceis.
     Mergulhar em um trabalho tão tecnicamente rebuscado e com um roteiro tão denso e multifacetado quanto De Olhos Bem Fechados não deve ter sido uma tarefa simples para os seus intérpretes.
    Até hoje o elenco do filme deu pouquíssimas declarações sobre a experiência em ter atuado em um longa de um cineasta tão mítico, excêntrico, ultra-exigente, detalhista e controlador quanto Stanley Kubrick.
    O que se sabe são boatos, quase todos, tão insanos quanto o próprio filme.
     A verdade é que, assim como todos os demais aspectos de De Olhos Bem Fechados, o seu elenco de atores é tão perfeito quanto um sinfonia de Bethoveen, tão afiado quanto uma navalha assassina e tão inesquecível quanto um trauma de infância.
     E, surpreendentemente, a interpretação mais visceral de todas vem de aonde menos se esperava: Nicole Kidman.
     Até então uma atriz mediana e símbolo de cinema pop descartável. Que sempre chamou muito mais atenção pela sua beleza física do que por seus dotes interpretativos.
      Entretanto, sob o comando de Kubrick, como se fosse um passe de mágica, a típica,e, medíocre, atriz hollywdiana se transforma em uma das femme-fatalles mais ferozes e ambíguas da história do cinema. Uma mulher que exala sensualidade, cinismo, paixão e perigo por todos os poros de seu corpo.
      Na cena em que a personagem de Kidman faz um violento e surpreendente desabafo a seu marido, sobre as suas fantasias sexuais, não estamos mais diante de uma atriz, nem mesmo de uma ótima atriz, mas sim de uma mulher de carne, ossos, sangue e fúria. E, ao final de seu monólogo, o espectador fica tão perplexo e aterrorizado com a ira avassaladora e repentina da personagem, quanto o seu próprio marido interpretado por Tom Cruise.
       Comentar sobre a carreira de Stanley Kubrick é comentar sobre a própria evolução do cinema nos últimos cinquenta anos.
   Pois Kubrick foi tão importante, e, vital, para a cinema quanto o foram, e, são, Michelangelo e Pablo Picasso e Albert Eistein e Stephen Hawking para as artes plásticas e para a física moderna, respectivamente.
    Ele via os filmes não como mero entretenimento ou uma forma de fazer dinheiro, mas, sim, como arte e ciência, acima de tudo.
    A perfeição em primeiríssimo lugar. Este era o lema de Stanley Kubrick. Pouco importava que seus filmes fossem custar milhares de dólares, que demorassem anos para serem concluídos, que transformassem as vidas de todos os envolvidos em suas produções---inclusive, e, principalmente, a vida do próprio Kubrick, em um verdadeiro inferno---a única coisa que importava para o cineasta era a execução perfeita de suas obras. E não perfeita, apenas, aos olhos do público, mas perfeita, principalmente, aos olhos do cineasta.
    Uma prova cabal disso, é o fato de Stanley Kubrick, durante a produção de De Olhos Bem Fechados, mandar membros de sua equipe técnica para medirem a largura exata que existia entre um cordão de calçada a outro de uma determinada rua da cidade de Nova Iorque, para que, depois, esta mesma rua pudesse ser reproduzida com total esmero e precisão, em estúdio, na Inglaterra.
     E esse exemplo é apenas uma gota de água no imenso oceano de apuro técnico e controle total que Kubrick exercia sobre suas obras.
     Ele era um verdadeiro desbravador da sétima arte, que, a exemplo  dos grandes navegadores dos séculos  XV e XVI e dos astronautas que surgiram a partir dos anos 1.960, se lançava de cabeça em projetos cinematográficos ditos, até então, como impossíveis.
     E para alcançar seus objetivos visionários de criar, verdadeiros, Mundos dentro do cinema, Kubrick usava de todas as armas, mesmo as que ainda não existiam, que estavam a sua disposição: inventava e mandava desenvolverem câmeras capazes das mais ousadas e inéditas capturas de imagens e trabalhava em conjunto com as maiores empresas de ciência e tecnologia, como a NASA, levava os atores de seus filmes quase a loucura e a completa exaustão ordenando repetissem a mesma cena quase uma centena de vezes, até que as interpretações desses alcançassem o exato impacto desejado por Kubrick.. E para impor o seu ponto de vista, sempre radical, incômodo e cerebral ao extremo, em suas obras, Stanley Kubrick também não media esforços: quebrando o pau com executivos de estúdio, atores e censores.
      E como é que um cineasta tão rígido e extremo em suas opiniões, autor de obras tão controversas, caras, subversivas e intrincadas, quase, sempre conseguia o que queria dos grandes estúdios de Hollywood? Estúdios estes que são caracterizados, quase, sempre por filmes modistas que incentivam a preguiça mental e só se preocupam com uma coisa: arrancar o máximo possível de grana em vendas de ingressos e com merchandising  infantiloide inútil, mesmo que para isso tenham que sacrificar, inteiramente, o lado artístico do cinema e ofender a inteligência de milhares de espectadores ao redor do Mundo.
     Por que por mais que pese o lado capitalista dos filmes e por mais que existam espectadores otários por aí, dispostos a engolirem qualquer merda que empresários inescrupulosos do ramo do entretenimento disfarçados de cineastas queiram lhe empurrarem goela abaixo, a indústria cinematográfica, não apenas de Hollywood, mas de todo o planeta, precisa de pessoas como Stanley Kubrick.
 Simplesmente, porque a própria sobrevivência e evolução técnica e artística da sétima arte dependem de cineastas como ele. Por que sem a audácia e radicalidade de artistas como Kubrick ainda estaríamos, praticamente, na época do cinema mudo e assistindo a filmes com roteiros tão banais e ingênuos que provocariam risadas até em um débil mental.
  Precisamos de cineastas como Stanley Kubrick porque os, poucos, diretores como ele fazem CINEMA. Enquanto que a grande maioria dos demais diretores realizaram, realizam e ainda vão realizar, apenas, filmes.