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Os Selvagens Somos Nós

  Selvagens (Editora Intrínseca, 288 páginas), de Don Winslon é James Ellroy na época atual.  Ou seja, apenas troque os EUA das décadas de 1940 a 1970 da Grande Depressão, Segunda Guerra Mundial, do Vietnã e de Watergate pelos EUA pós-11 de setembro, da Modernidade Líquida, do cyberpunk, consumismo insano, dos banhos de sangue bélicos no Iraque e no Afeganistão. E pronto.
 De resto parece que estamos exatamente diante da prosa feroz e afiadíssima do Cachorro-Louco da Literatura Americana.
 Continua tudo lá: os policiais corruptos até a medula, os vilões monstruosos, os anti-heróis tão terríveis quanto os vilões, as femme-fatales gostosas pra cacete e letais pra caralho, a violência sem limites, o sadismo sem fronteiras, o sexo animalesco e aquela narrativa mais ágil, musculosa e veloz do que qualquer longa de ação, capaz de provocar no leitor orgasmos de adrenalina pura.
 O que muda é que agora os personagens não são mais investigadores decadentes, atrizes de cinema promíscuas, lutadores de boxe e outros arquetípicos do noir tradicional.
 Selvagens é um thriller policial que tem como espaço e tempo o aqui e agora do Mundo e da violência globalizados. Um lugar onde assassinos que destroçam e mutilam os seus desafetos a golpes de motosserra não precisam mais se darem ao trabalho de enviarem pedaços dos corpos de seus inimigos até as portas das casas de seus familiares...basta usarem uma pequena web cam na cena do crime.
 O cyberspace é o Hades, a internet um portal escancarado para o Inferno. A maldade é instantânea e o Demônio esta 24 horas on-line.
 Para os personagens revólveres e pistolas são coisas de museu. Em Selvagens quem ditam as regras são as  escopetas capazes de explodirem cabeças, rifles militares de alta tecnologia que dizimam pequenos exércitos em segundos e bombas que reduzem quadras inteiras a pó. Já os velhos detetives de trabalho de campo foram substituídos por hackers que, sem botarem os pés na rua, podem destruir a sua vida e derrubarem instituições e empresas, transformando notebooks em armas mais fatais que metralhadoras e lança-mísseis.
 Ben e Chon são dois traficantes de luxo da Califórnia que abastecem a região com a melhor, mais sofisticada e poderosa marijuana que se possa imaginar.
 Amigos inseparáveis, mas opostos absolutos, os dois veem o Mundo e vivem as suas vidas da forma mais antagônica possível.
 Filho de pais hippies-pacifistas, Ben usa o seu tempo livre gastando a bolada que ganha com o tráfico viajando ao redor do Globo e socorrendo com ações beneficentes as populações do Terceiro Mundo estupradas pela fome, miséria e violência inconcebíveis perpetradas pela maldade humana.
 Criado por um pai militar barra-pesada, Chon desde cedo se apaixonou por ação e sangue. Abraçou a vida militar e mergulhou de cabeça no furacão de violência, torturas, corrupção política, bombas e armamento pesado da intervenção dos EUA no Oriente Médio.
 Na guerra Chon viu toda a espécie de horror que se possa imaginar. Praticou toda a espécie de horror que se possa imaginar.
 Ele não acredita mais em ações altruístas e inocência. Acredita sim que todo o ser humano é um animal selvagem e que a única forma de combater o fogo é usar mais fogo ainda.
 Ao voltar da guerra ele descobre que ficou viciado em atrocidades e enquanto que Ben viaja pelo planeta como um Gandhi americano, Chon é um anjo da morte. Um mercenário frio e implacável que pratica todo o tipo de serviço sujo tanto para iniciativas privadas quanto estatais.
 A única coisa que Ben e Chon tem em comum, além do tráfico de maconha, é a boceta de Ophélia, ou O. para os íntimos. Uma loiraça tarada por sexo e grifes caras.
 O triângulo amoroso vai muito bem, obrigado: ganham rios de dinheiro com a venda de drogas, a lá Scarface levam a vida de forma absolutamente desregrada fumando, ingerindo e bebendo todas e fodem como animais no cio.
 A rotina de drogas e ménages à trois do trio é interrompida quando um poderoso cartel de drogas mexicano em permanente expansão decide comprar, por bem ou por mal, o negócio de Ben e Chon.
 Eles só possuem duas alternativas: se tornarem sócios e empregados do cartel ou serem feitos em pedaços com requintes de crueldade inumana por assassinos psicopatas e torturadores profissionais.
 Para demonstrarem logo de cara que são do tipo "atira primeiro e pergunta depois", os traficantes mexicanos  sequestram O. e a deixam aos cuidados de um bandido ultra-sádico que é o próprio diabo na Terra e que não sabe qual ideia lhe dá mais tesão: estuprar Ophélia ou transformar o corpo dela em um amontoado de bifes sangrentos.
 Influenciada pela filosofia de "Foda-se o Mundo" de Chon a dupla de traficantes decide, não apenas negar sociedade ao cartel, mas também atacá-lo com o máximo de poder de fogo possível, transformando a Costa Oeste dos Estados Unidos em uma sucursal do Iraque.
  Don Winslow segue a risca a Escola Hammettiana de Literatura Policial: realismo no talo doa a quem doer, dane-se para qualquer espécie de sutileza, assunto de macho, e, o principal, não manter a Ficção Policial engessada e fechada em si mesma, como nos tempos de Sherlock Holmes e Hercule Poirot, mas totalmente linkada e crítica com todos os aspectos da sociedade e do contexto histórico em que está inserida.
 Toda a brutalidade e velocidade que explodem das páginas de Selvagens nada mais é do que o reflexo do zeitgeist em que vivemos.
 Uma época em que valores e relacionamentos são descartados na rapidez de um "desfazer amizade" do facebook, onde guerras são travadas friamente a distância por meio de teclados de computadores e as baixas tratadas como se fossem meros avatares descartáveis de vídeo-games.  Um Mundo que nos joga na cara de forma cada vez mais escancarada que o único Deus por trás das dezenas de religiões e sub-religiões que surgem a cada dia, é o Deus-Demônio do lucro e da corrupção. E que toda a miséria, massacres e genocídios em massa pelo Globo a fora são apenas negócios, tratados da mesma forma como você trata uma ida ao banco para pagar as suas contas do mês.
 Selvagens é um livro que possui por baixo de sua aparência de ficção Pulp de ação rápida e sanguinolência sensacionalista uma gigantesca polissemia que discute de forma aprofundada o núcleo das principais questões filosóficas, políticas, sociais e culturais que explicam os aspectos mais sinistros de nosso tempo.
 Não foi a toa que Oliver Stone se interessou pelo livro de Don Winslow. Ben e Chon parecem, a grosso modo, uma versão mais jovem e urbana dos sargentos Elias e Barnes do clássico Platoon. Ou seja, dois personagens separados, mas que, unidos, representam o eterno confronto entre o Bem e o Mal que dilaceram a alma do Homem durante toda a sua vida.
 Mas Ben e Chon, juntamente com Ophélia, representam bem mais do que a simples dualidade entre o Bem e o Mal. Eles encarnam as personas da grande maioria do típico ser humano da Sociedade movida pelo anarcocapitalismo feroz e inumano do século XXI.
 Ben é o símbolo do burguês moderno covarde que pratica atos filantrópicos e usa o discurso babaca e hipócrita do politicamente correto e dos Direitos Humanos para fugir do caos que ele próprio ajuda a manter.
 Já Ophélia representa um dos milhares de hospedeiros do capitalismo parasitário que existem pelo Mundo: os consumistas peões-otários que adquirem sem pensar qualquer merda que a mídia lhes empurre goela abaixo e que são a principal engrenagem da máquina que sustenta e conserva esse Sistema Neoliberal Antropofágico onipresente que devora a Terra.
 Para Ophélia a gastança e o consumo desenfreado de produtos da moda são como uma droga que ela utiliza para amortizá-la e isolá-la do lamaçal de violência e corrupção sem fim que se espalha a sua volta. Uma droga tão implacável e da qual Ophélia se torna tão escrava quanto do aterrorizante carrasco dos traficantes que a mantém prisioneira.
 Chon, sócio e lado negro dos negócios ilícitos de Ben, é o cara que realmente sacou qual é a do Mundo e da Sociedade em que vive. Ele descobriu que a única diferença entre uma hiena sanguinária e carniceira dos confins de uma savana africana e um executivo de Wall Street formado em Harvard é o terno e a gravata. De resto ambos não passam de duas bestas selvagens travando uma insana guerra diária pela sobrevivência pura e simples da qual  apenas o mais forte, feroz e mais bem adaptado irá sobreviver. E que a globalização com o intuito de unir e igualar as pessoas ao redor do planeta é apenas teoria. Na prática globalização é uma forma dos mais fortes dominarem e devorarem os mais fracos. Fim de papo. Não adianta chorar. Esse é o Mundo de verdade em que vivemos.
 Personagem nietzschenianao, Chon só conseguiu compreender os cruéis mecanismos que alavancam a civilização humana depois de ficar por muito tempo contemplando o fundo do abismo da alma do Homem, só muito tempo depois que este mesmo abismo devassou a própria alma de Chon.
 O preço por descobrirmos a horripilante verdade que nos cerca e domina é termos o nosso sangue transformado em chumbo líquido e nossos neurônios convertidos em bits e bytes de uma fria e inumana equação computacional.
 Para conseguirmos caçar os monstros que querem nos devorar precisamos nos tornar tão monstruosos como eles.
 Da mesma forma que Dashiell Hammett, James Cain, Patricia Highsmith e James Elltoy, Don Winslow, que como Hammett antes de se dedicar a literatura trabalhou como detetive particular, é um autor policial cujo conhecimento do submundo vai além da minuciosa descrição de armamentos, tiros e explosões. A exemplo dos mestres da Literatura Policial descritos acima, Winslow possui, em primeiro lugar, um conhecimento profundo sobre o lado mais negro do ser humano.
 E "Selvagens" é um exemplo cabal disso: um neo-noir alucinante escrito sob medida para os fãs de ficção hard-boiled. Aqueles leitores que não tem medo de verem arrancada e estraçalhada, tanto nas páginas de livros como na vida real, a hipócrita máscara de civilidade de nossa sociedade atual.

 Quem é mais selvagem? Nós ou Eles?
 Cannibal Holocaust