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Revolução Pop

 Quando eu tinha treze anos de idade, e, como todo o bom aluno vagabundo e rebelde, repetia a quinta série uma professora de História falou para minha classe uma frase que foi para mim como um soco na boca do estômago e mudou a minha vida e a maneira de eu ver e pensar sobre o país onde eu vivo para sempre: "O Brasil não foi descoberto com a intenção de ser colonizado, mas sim de ser explorado".
 Acredito que tenha sido no instante em que escutei essa frase que a inocência de minha infância e adolescência começou a atrofiar, apodrecer e morrer. Foi aí que eu comecei a trilhar a espinhosa estrada que leva à vida adulta. Foi aí que eu percebi que vivia atolado até o pescoço em um mar de merda. Foi aí que a ficha caiu.
 Essa professora, da qual infelizmente eu não me recordo mais o nome, foi a primeira professora de História de verdade que eu tivera até então. Ela era uma professora que estudava a história do Brasil de dentro para fora. Uma docente que não apenas analisava as mazelas de nossa sociedade, mas que as vivia diariamente, que se indignava e se enfurecia com elas. Ao contrário dos demais professores que haviam me "ensinado" esta disciplina em séries e anos anteriores, e que mais pareciam estrangeiros do Primeiro Mundo vendo o meu país de longe e que falavam sobre as nossas revoluções, guerras e política de forma fria e distante como se estivessem narrando lendas de um reino mítico, aquela professora ensinava a verdadeira história do Brasil. E o fazia como uma brasileira de verdade e não como uma marionete que só falava aquilo que estava na cartilha dos militares que ainda governavam o Brasil aquela época.
 De lá para cá as coisas só pioraram, ou, na melhor das hipóteses, continuaram na mesma: governos ditatoriais, neoliberais, de direita, de esquerda, pouco importava: a grande maioria do povo brasileiro sempre continuava a ser esmagado e feito de idiota por uma pequena parcela de nossa sociedade que se autodenomina "a elite", mas que na verdade não passam de um corja podre de marginais torpes disfarçados de políticos e intelectuais. Aprendi que o tal "jeitinho brasileiro", como nos mostra o brilhante romance Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, não passa de um eufemismo cínico para corrupção, roubo, assassinato e todas as espécies de contravenções mais baixas que se possa imaginar. Descobri que o povo brasileiro tem muito pouco de gentil e humano, que é a imagem que os estrangeiros tem de nós, e muito de animalesco e cruel. Saquei que na maioria das vezes o governo é um mero reflexo da população para quem governa e que no Brasil a palavra democracia, desde muito antes do advento da internet, sempre foi algo virtual.
 Venho sentindo na carne, durante todos esses anos, os efeitos daquela frase proferida por minha professora de História a quase trinta anos atrás.
 Finalmente, depois de quinhentos anos sendo massacrado com todo o tipo de escravidão: física, ideológica, financeira, etc, as recentes, e, espero que permanentes, manifestações populares parecem darem um sopro de autêntica rebeldia e revolta contra os séculos de deturpação absurda de quase todos os segmentos da Sociedade Brasileira.
 Acredito que o motivo de que, desta vez, o grito de "Basta"! do povo seja autêntico não apenas porque a revolta veio direto das massas populares sem o incentivo de partidos políticos oportunistas e sindicatos, mas  porque agora os manifestantes não ostentam como símbolos de seu ódio contra o Sistema cartazes com fotos de líderes farsantes de partidos políticos ditos de "esquerda", mas sim as irônicas  máscaras de um perturbador personagem de uma revista em quadrinhos, que por sua vez foi baseado em um notório terrorista inglês que pretendia explodir todo o parlamento do Reino Unido em 1605, escrita por um sinistro bruxo moderno adepto de drogas alucinógenas.
 A revolução popular brasileira de hoje e agora pode realmente destruir todo esse status quo fariseu que a meio milênio se alimenta de nosso sangue e suor porque dessa vez a revolta não está sendo inspirada e sustentada por políticos charlatões ou símbolos patrióticos que só servem para fazerem lavagem cerebral, mas sim pela cultura pop.
 Quando aqui eu falo sobre cultura pop não estou querendo dizer Michael Jackson, Madonna, Big Brother, bandas emo e outras bostas. Estou me referindo a cultura pop como o lado escuro, revoltoso e perverso do conhecimento de uma sociedade.
 O nível de politização de um povo está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento cultural deste. E desde o início do século XXI que uma das formas de arte mais poderosas que existem vem se desenvolvendo assustadoramente, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina: o cinema.
 Não é possível que  filmes que tenham se entranhado tanto no imaginário popular quanto Tropa de Elite 1 e 2 protagonizado por um personagem como o Capitão Nascimento, que em sua sede homicida de fazer justiça com as próprias mãos tem muito de outro símbolo seminal da cultura pop, o Batman hardcore do clássico cult das HQ O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, que através de cenas visceralmente inesquecíveis, como a em que esmurra quase até a morte um político corrupto do alto escalão, se tornou o arquétipo do brasileiro de saco cheio e furioso com tanta imundície política ao seu redor, não tenha influenciado, em maior ou menor grau, consciente ou inconscientemente, a turba de manifestantes ferozes que invadiu as ruas exigindo vergonha na cara de nossos governantes e equidade imediata em todos os setores da Sociedade Brasileira.
 Tanto Tropa de Elite, quanto outro clássico recente do cinema nacional, Cidade de Deus tem como bases obras literárias que foram escritas por moradores de favelas e soldados do BOPE. Ou seja, ao contrário do incensado autor brasileiro de Literatura Policial e de Ação, Ruben Fonseca, que a despeito de suas qualidades literárias no fundo não passa de um burguês apavorado com toda a degradação social que o cerca e a qual observa de longe protegido pelos muros da Alta Sociedade, foram livros escritos direto do front de batalha por pessoas que diariamente são lavadas pelo banho de sangue que jorra dos subúrbios pelo Brasil a fora.
 Os filmes de José Padilha e Fernando Meirelles fizeram com o povo brasileiro aquilo que o rock, heavy metal e punk nunca conseguiram por aqui: sacudir as nossas cabeças, eletrizar nossos neurônios, esfregar em nossa cara toda a podridão que a sociedade varre para baixo do tapete e nos fazer berrar em volume máximo: CHEGA!!! BASTA!!! FODAM-SE!!!
 Agora, quando saímos as ruas temos como aditivo para turbinar nossa contestação não mais apenas aquelas lentas canções, que devido ao fato de terem sido compostas nos Anos de Chumbo tinham que mascarar as suas letras com toneladas de metáforas sacais, proferidas por cantores de MPB que mais pareciam estarem morrendo do que protestando contra alguma coisa, mas também as raivosas imagens de filmes editados com a fúria e a velocidade de uma rajada de balas de metralhadora e protagonizados por personagens de idiossincrasia radical que parecem arremessar para fora das telas toda a verdade nua e crua do mundo cão.
 Outro fator crucial do atual motim do povo brasileiro, que a exemplo do cinema, está diretamente ligado a cultura pop, e armamento mais pesado usado pelos manifestantes, foram a utilização maciça das ferramentas de comunicação digital.
 Pela primeira vez desde o surgimento da web a população brasileira, em especial os mais jovens, estão se tocando do poderosíssimo instrumento de subversão política e social que é a internet e as redes sociais e não apenas um canal para exibições de narcisismo e moldura para fotos de cartão postal.
 Cada vez que eu vejo o facebook sendo utilizado para divulgar a revolução popular ou a postagem de algum cidadão brasileiro furioso com a putrefação de qualquer aspecto de nossa sociedade, parece que eu estou lendo as eletrizantes páginas das sci-fi terroristas de escritores, cujas ideias se inspiram nos aterradores romances contraculturais de William Burroughs e nas experiências anarco-científicas de Timothy Leary, como Bruce Sterling, William Gibson, Rudy Rucker, Neal Stephenson, etc, com os seus hackers selvagens, netrunners revoltados contra tudo e contra todos, geeks insurgentes e exércitos de terroristas cibernéticos que utilizam as redes de computadores e a realidade virtual para derrubarem governos despóticos.
 Ok, mas a vida de verdade não são filmes, livros e HQ, por mais insurretos que estes sejam. Em nosso Mundo de carne, ossos e sangue as histórias nunca terminam e a guerra é incessante...Então o que será que vai acontecer a partir de agora que este primeiro passo, inédito, na História do Brasil já foi dado?
 Bom, em primeiro lugar deve-se deixar bem claro que esta erupção popular não se deu em todos as classes da sociedade brasileira. Se assim o fosse teríamos resolvido os problemas do país em apenas dois dias de manifestações. As camadas sociais que realmente fariam a diferença nas ruas: a população chão de fábrica que vivem em um regime de trabalho praticamente escravocrata, os milhares de miseráveis que sobrevivem com um salário mínimo por mês e que somam quase 90% de nossa população e que são a infantaria e bucha de canhão da economia brasileira carregando o país em suas costas, não compareceram as ruas para demostrar a sua fúria e indignação.
 Por que não? Se são eles os mais prejudicados e explorados?
 Reponderei esta pergunta com outra pergunta: por que você acha que, até hoje, não se investiu de forma maciça em educação neste país?
 Justamente para acontecer o que está acontecendo agora: evitar que a indignação, o ódio e a revolta não cheguem a contaminar a grande maioria da população. Que a revolução popular, que sempre foi a única forma de realmente mudar de forma radical e profunda os rumos de qualquer país em crise, fique estagnada em pequenos nichos da nação brasileira.
 E agora? É possível extirpar, apenas com uma pequena parcela da população, do Governo a implacável escória mafiosa que a séculos vem estuprando e corroendo nossa sociedade com a sua peçonha ácida?
 Acredito que sim. Mas precisamos cuidar para não cairmos nesse papinho idiota de revolução pacífica.
 Segundo o dicionário Aulete Digital revolução significa: levante armado, insurreição, rebelião...Agora alguns sinônimos de "revolução" segundo o Dicionário de Sinônimos: agitação, inquietação, perturbação, indignação, repulsa, revolta...Enfim, toda espécie de palavra e conceito que passa longe de pacífico ou qualquer espécie de passividade.
 Pois está claro como água que se qualquer povo, de qualquer país que seja na face da Terra, decidiu fazer um levante contra os seus governantes é porque as coisas não estão nada boas, é porque é a hora da ação e não a da apatia. É porque ser pacífico não adiantou porra nenhuma!
 Devemos ir às rua e gritarmos a nossa indignação! Mas se nossos gritos não adiantarem devemos irmos adiante... Então deveremos mostrar para Eles não apenas a força de nossas vozes, mas agora, também, a força de nossos músculos!
 E isso não tem nada a ver com essa chinelagem oportunista que se aproveitou dos protestos para praticarem saques a lojas. Isso é um bando de arruaceiros apolitizados que estão pouco se lixando para as contestações públicas e que a mídia do status quo está utilizando como arma para colocar a opinião pública contra a população que está nas ruas e assim pulverizar a revolução. A mesma mídia aliás, que vive batendo na mesma tecla em todos os meios de comunicação que seus tentáculos conseguem atingir: "de que a revolta deve sempre ser pacífica" e de que os manifestantes devem se comportarem como monjes budistas mesmo quando um exército de policiais a cavalo investem em cima destes...
 Bom pessoal, não a mais nada a falar, pois esta história ainda não acabou, ela está sendo escrita AGORA!  E  nós é que somos o papel, a caneta e a mão com que ela está sendo redigida!
 Foi um grande passo termos trocado, como signo da revolução, siglas políticas pelo terrorista da HQ "V de Vingança". Agora nós só temos que seguirmos a risca os sábios conselhos deste personagem.