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Porquinhos da Índia

 Não sei exatamente quando que o Mundo Ocidental se tocou de que o Cinema Asiático é tão foda e visionário em produções de horror e fantasia quanto o é em matéria de filmes de ação e artes marciais, mas eu descobri isso em uma viagem de metrô ligando minha cidade, São Leopoldo, à Porto Alegre em algum ponto entre os anos de 1999-2000.
 Na ocasião eu estava no trensurb com um amigo geek/headbanger que compartilha comigo a paixão pelo lado mais animalesco da cultura pop: Cinema de Horror, cyberpunk, HQs sádicas, death metal, Robert E. Howard, Clive Barker, etc. Essas coisas que podem queimar o filme de sua vida social e profissional.
 Este meu amigo sacou, de uma pasta que estava carregando, um punhado de folhas com textos que ele havia imprimido dos mais obscuros sites das profundezas do Inferno Digital, enquanto me perguntava: "Tu já ouviste falar em filmes de terror japoneses"?
 À época este subgênero cinematográfico me era tão desconhecido quanto o é para um sem-teto uma banheira com hidromassagem, mas como sou uma criatura eternamente ávida por tudo que contenha as palavras terror, horror, sangue e carnificina arranquei as páginas das mãos de meu amigo e comecei a devorá-las em meio ao chacoalhar dos vagões dos trens e as ladainhas depressivas de passageiros aidéticos e cancerosos miseráveis implorando alguns tostões aos demais viajantes para comprarem os medicamentos paliativos de suas doenças sem volta.
 Aquelas produções de horror nipônicas eram tudo que eu sempre mais amei no gênero: brutais, nojentas, exageradas, absolutamente monstruosas, totalmente malignas, inteiramente devassas, zero de boas intenções.
 Dentre os vários aspectos inovadores, em comparação com os bons-modos das burocráticas produções de horror do Cinema do Ocidente, naqueles aterradores filmes japoneses estava a crueza da maioria dos temas abordados, quase sempre pertencentes ao polêmico universo das películas Mundo Cão (Faces da Morte, Traços da Morte, vídeos reais de necropsia, etc) e dos míticos filmes snuff.
 Para qualquer aficionado, como eu, que se preze de filmes de horror os snuff são a fronteira final do gênero. Aquele tesouro que o connoisseur do gore, geralmente, irá procurar incansavelmente durante toda a sua existência mesmo que a única recompensa, caso um dia venha a encontrá-lo, sejam suores frios e pesadelos noturnos pelo resto de sua vida. A diferença entre os vídeos da série Faces da Morte e congêneres, encontrados em qualquer vídeo-locadora da vida, e os snuff é que os primeiros não passam de documentários, por vezes fake, mostrando as mais variadas atrocidades, sem nenhuma ligação entre si, ao redor do Globo como matanças de gado em frigoríficos, execuções em cadeiras elétricas, acidentes fatais, etc. Apesar de pesadíssimos, esses filmes mostram matanças que são fruto de desgraças como, por exemplo, as causadas pela força da natureza ou fazem parte de uma violência institucionalizada como as praticadas por matadouros, execuções de criminosos condenados a pena de morte, etc. Quer dizer, por mais nauseante e truculento que sejam as imagens está tudo dentro da lei.
 Já com as produções snuff o buraco seria bem mais embaixo...Aqui todo mundo envolvido no filme, menos alguns atores, sabem, desde o início, que o negócio vai ser para valer, sendo que são, na maioria das vezes, os próprios intérpretes da produção os perpetradores dos massacres. Além disso existe um roteiro, repleto de carnificinas, mortes, torturas e estupros, com começo meio e fim que é seguido a risca.
 É, supostamente, assassinato frio e real praticado em tempo real em frente as câmeras. Maldade pura.
 O termo snuff foi inventado no início da década de 1970 pelo roqueiro e escritor beat Ed Sanders que divulgou que a seita de psicopatas, liderada pelo notório assassino Charles Manson, havia filmado algumas das mortes que tinha cometido na década anterior.
 A natureza grotesca e singular de tal atrocidade assustou a população e chamou a atenção das autoridades que deram início a uma meticulosa investigação federal nos Estados Unidos, que contou com a ajuda de experts em efeitos especiais, para analisarem a fundo a veracidade dessas produções malditas que, a partir da polêmica declaração de Sanders, começaram a se espalhar nas grindhouses pelo Mundo a fora.
 Após 20 anos esmiuçando os supostos "filmes que matam" o FBI chegou a conclusão de que tudo não passava de efeitos visuais, alguns assustadoramente realistas, outros, nem tanto...
 Entretanto o mal já estava feito e a semente dos snuff foi plantada no imaginário popular tornando-se uma lenda urbana, assim como o Velho do Saco, A Gangue do Palhaço, e os Traficantes de Orgãos Humanos.
 Além disso os "filmes que matam" envenenaram a cultura pop turbinando as imaginações de escritores, cineastas, etc. Sendo citados, em maior ou menor grau, tanto em obras literárias, como o clássico da FC Neuromancer, de William Gibson, quanto em longas como Videodrome, de David Cronenberg, Emanuelle In America, de Joe D' Amato e Strange Days, de Kathryn Bigelow.
 Com todo esse macabro currículo em suas costas não foi a toa que, dentre todas as sadicamente inventivas produções de horror que haviam naquelas páginas impressas pelo meu amigo, a que mais me tinha impressionado e mexido com a minha imaginação era um snuff. Um como eu nunca havia ouvido falar antes...
 O filme japonês Flowers of Fleisch and Blood é, ao lado do italiano Canibal Holocaust, uma das produções mais polêmicas de todos os tempos e uma das que mais conseguiram enganar e chocar os espectadores ao fazê-los acreditar que, finalmente, estavam diante de um autêntico "filme que mata".
 Um dos fatores que mais contribuíram para toda a controvérsia em torno de Flowers of Fleisch and Blood foi, sem dúvida, o envolvimento do conhecido ator hollywdiano Charlie Sheen que viu uma cópia do filme na casa de uns amigos e, horrorizado com o realismo da obra, a denunciou para o FBI afirmando para as autoridades que se tratava de um snuff fidedigno.
 Após uma extensa investigação, em que os realizadores do filme tiveram que mostrar aos policiais, por meio de um making of, como foram, passo-a-passo, realizados os incríveis efeitos visuais da produção, chegou-se a conclusão de que, mais uma vez, tudo não passava de pura ficção.
 Bom, a partir deste dia no metrô eu comecei a adquirir qualquer tipo de publicação impressa que pudesse me passar algum tipo de conhecimento sobre este diabólico e lendário clássico gore. Algo que, diga-se de passagem, devido a natureza ultra-tétrica da obra, sempre foi muito difícil de encontrar.
 Foi só quando tive mais acesso a internet, que é uma verdadeira porta escancarada para dentro do lado mais negro do Homem, que eu pude mergulhar de cabeça em minha pesquisa sobre Flowers of Fleisch and Blood. Logo descobri que se tratava de um curta-metragem, o segundo, pertencente a uma série composta de onze episódios e com o sugestivo título Guinea Pig. A série foi idealizada pelo mestre dos mangás de terror, Hideshi Hino e pelo produtor Satora Ogura.
 O título é uma alusão aos porquinhos-da-índia (guinea pig, em inglês) e aos ratos de laboratório que são torturados e dissecados sem piedade por pesquisadores e especialistas das mais variadas áreas em prol do avanço científico.
 Mas na série Guinea Pig a única função das experiências com os "porquinhos da índia" é testar os limites do sadismo humano...
 A pouco mais de um ano atrás eu finalmente consegui adquirir dois exemplares da obra de Hino e Ogura.
 Bem, agora o que eu posso dizer é que a espera de treze anos, desde aquele dia no metrô, valeu cada segundo...
 Guinea Pig 2: Flowers of Fleisch and Blood (Za ginipiggu 2: Chiniku no Hana, Japão, 1985), dirigido e escrito por Hideshi Hino é, simplesmente, empolgante tanto para os aficionados do grand guignol, quanto para técnicos e estudiosos de efeitos especiais. Um impecável exemplar de Cinema Extremo que arrasta o espectador para dentro de um verdadeiro inferno gore. Um filme que, definitivamente, não é para qualquer um.
 Apesar de, por um certo tempo, Flowers of Fleisch and Blood ter causado tanta controvérsia quanto A Bruxa de Blair e Canibal Holocaust, o curta de Hideshi Hino não foi realizado nos clássicos moldes found footage das obras de Deodato e da dupla Eduardo Sánchez/Daniel Myrick.
 Na verdade, um olhar mais atento em Za ginipiggu 2 perceberá que o filme possui uma gravação de imagens fluída e edição profissional. Distante das imagens tremidas e câmeras nervosas manipuladas pelos próprios atores como ocorre na maioria dos candidatos a snuff. E apesar da narrativa iniciar com um letreiro informando o espectador que o filme foi realizado em formato 8 mm e entregue em um pacote por um doador anônimo na casa do desenhista Hideshi Hibino ( uma mal-disfarçada referência ao próprio diretor/roteirista/produtor da série Guinea Pig) em nenhum momento do curta se vê alguém manipulando alguma câmera, como é comum neste tipo de produção.
 Flowers os Fleisch and Blood praticamente não possui roteiro. É apenas um psicopata asqueroso estraçalhando o corpo de uma mulher até o seu último pedaço da forma mais realista, explicita e orgânica possível. É o ancestral de todos os torture porn que foi até aonde nenhum de seus descendentes, até hoje, tiveram o sangue-frio de irem.
 O assassino vai narrando de forma íntima e detalhada, para o espectador, todos os aspectos e pormenores das técnicas de tortura crescentemente inimagináveis que vai aplicando em seu "porquinho da índia". Tudo envolto por uma subliminar atmosfera de erotismo mórbido que parece dominar tanto o algoz, quanto a vítima.
 A mágica, ou seria melhor dizer magia negra, que dá vida ao filme de Hino são os efeitos especiais de maquiagem e próteses humanas que fariam, mesmo hoje, vinte e oito anos depois, o pessoal da Legacy, Creature Shop e KNB ferverem de inveja.
 Entre as dezenas de desgraceiras gore/splatter fodásticas que espirram na tela a cada segundo durante a exibição de Za ginipiggu 2 destacam-se a evisceração do sistema digestório,--- quem possui algum conhecimento em anatomia sabe que nosso estômago, intestinos, etc, formam um grande bolo que, se desenrolado, pode atingir até doze metros de comprimento. Um detalhe anatômico e fisiológico que foi rigorosamente respeitado pela equipe de efeitos especiais do filme,--- e os cotos amputados dos braços da vítima que se movimentam em espasmos arrepiantes capazes de deixar de boca aberta até o mais veterano fã de Cinema Extremo.
 Enfim, nesses tempos em que o cinema moderno tem  a seu dispor toneladas de hardware e software de última geração e mesmo assim parece sofrer de uma aguda crise de falta de criatividade e ousadia é quase inacreditável ver tudo o que os realizadores de Flowers of Fleisch and Blood fizeram a quase trinta anos atrás com, praticamente, um boneco e alguns litros de sangue falso.
 O curta fecha com o torturador proferindo um longo, denso, profundo e aterrador monólogo que serve como pano de fundo para a exibição das mais apavorantes, grotescas, macabras e surreais imagens, não apenas do próprio Za ginipiggu 2, mas, provavelmente, da própria cinematografia de terror de todos os tempos.
 Guinea Pig: Devil's Experiment (Za ginipiggu: Akuma no jikken, Japão, 1985), foi dirigido pelo outro hemisfério cerebral por detrás da série, o produtor Satoru Ogura, e é o filme que inaugurou a franquia.  Entretanto, assim como aconteceu com os demais exemplares de Guinea Pig, ele foi ofuscado por toda a polêmica que cercou Flowers of Fleisch an Blood. 
 Porém, isso não faz com que Devil's Experiment não seja uma experiência quase tão arrebatadora e tecnicamente primorosa quanto o seu sucessor.
 Seguindo a mesma linha que o segundo exemplar da série, Akuma no jikken também deseja confundir e perturbar o espectador ao tentar se passar por um snuff real. Entrementes, o filme, que assim como todos os demais da série também é um curta metragem, possui imagens e movimentos de câmera tecnicamente superiores aos da obra de Hino, rompendo de vez com o estilo, tão caro ao gênero snuff, found footage.
 Mas esse aspecto, que tira um pouco da crueza da obra, é compensado pelos dados informativos que aparecem nos cantos da tela, explanando que tipo de experimento está sendo realizado naquele momento com a cobaia. Isso dá um ar maior de experimento científico frio e racional a Devil's Experiment, realizado pelos "cientistas" de forma distante e indiferente, fazendo mais jus ao título da série e acentuando o sadismo.
 Akuma no jikken é mais contido em seu lado propriamente gore do que Chiniku no Hana, em compensação a violência e horror psicológicos sofridos pela vitima é mais intenso do que no curta de Hino.
 Mas não vá pensando que Satora Ogura realizou algum slasher imbecil para adolescentes do ensino médio ou alguma obra de terror subliminar como O Silêncio dos Inocentes e Seven. Embora não sejam tão constantes quanto em Flowers of Fleisch and Blood, o sangue e as tripas quando surgem em Devil's Experience reviram o estômago e estraçalham os nervos de muito machão que tem por aí. Da mesma forma que Chiniku no Hana, Akuma no jikken também é para poucos.
 Infelizmente, Ogura não teve a mesma mão forte que Hino no quesito interpretação de atores. Isso fez com que, quase até a metade do filme, as interpretações, tanto dos algozes quanto da vítima, soem irritantemente artificiais e cheguem as raias do cômico.
 Mas isso não estraga a obra que do meio até o seu final pega realmente pesado, culminando na antológica cena do close-up da perfuração ocular que deixa até ao mais cético dos cinéfilos em dúvida se o que ele está vendo é, ou não, real, ou se, ao menos, não utilizaram um cadáver humano para realizar a tal cena.
 Como acontece com a maioria de fenômenos pop japoneses, as raízes da série Guinea Pig estão nos cultuados mangás ( histórias em quadrinhos nipônicas). Hideschi Hino criador, produtor (ao lado de Satora Ogura), e diretor/roteirista de dois episódios da série ( Flowers of  Fleisch and Blood e Mermaid in the Manhole) é um dos mais famosos mangakás do Japão. Hino é expert em mangás de horror radical repletos de cadáveres putrefatos, criaturas monstruosas e assassinos sanguinários.
 Antes que alguém aí comece a pensar que os japoneses são os seres mais doentios do universo, devemos entender de que se trata de um povo com valores e tradições completamente diferentes da maioria dos países ocidentais.
 O Japão nunca aceitou o cristianismo, tampouco as ideias de Freud. Devido a isso eles vêem o sexo e a violência de um ponto de vista bem mais livre e sem encucações.
 Para os japoneses pouco importa se você é sadomasoquista, homossexual ou pervertido. O que vale para eles é se sentir a vontade com suas taras e preferências sexuais.
 E nem por isso a sociedade japonesa é um poço de violência, muito pelo contrário, trata-se de um dos povos mais educados e gentis entre si do planeta. Enquanto que no Brasil, um dos países mais cristãos do mundo, impera a barbárie e a truculência.
 Mas não vamos nos aprofundar em questões sociológicas e filosóficas...O que importa é que Guinea Pig é uma das séries de filmes de terror mais fortes e polêmicas de todos os tempos e uma das que mais contribuíram para perpetuar e espalhar o mito dos snuff . Também são os exemplares de Cinema Extremo mais revolucionários em termos de confecção de efeitos especiais dos últimos tempos. E que, muito provavelmente, deve ter servido de escola para alguns dos maiores experts de efeitos visuais de Hollywood e do Mundo. Experts esses que, é quase certo, nunca revelarão que se basearam em uma doentia série de horror japonesa para elaborarem os inovadores efeitos de suas produções milionárias. Assim como é pouquíssimo divulgado que a edição de som de O Exorcista, premiada com o oscar da categoria, foi produzida por um técnico de som oriundo das produções malditas do obscuro cineasta chileno Alexandro Jodorowski, ou que os programadores dos supercomputadores da Weta Digital que criaram o Mundo de Avatar de James Cameron devem muito de seu aprendizado aos banhos de sangue e vísceras que fizeram a fama da empresa de efeitos especiais de Peter Jackson, lá em seus primórdios.
 Bom, enquanto isso o verdadeiro snuff aguarda por nós nos porões de alguma vídeo-locadora decadente ou escondido nos fundos de uma sex-shop sadomasoquista...

 Agradecimentos a Carlos Thomaz "Canibal" Albornoz.










 


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A Morte Também Ama

 Dentre todas as parafilias a mais radical, repugnante e aterradora é, sem dúvida, a necrofilia.
 Mesmo o Cinema de Horror, esse monstro que se alimenta incessantemente dos aspectos mais negros do Homem, parece temer a necrofilia.
 São raríssimas as produções do gênero que tratam do assunto sem nenhum acanhamento. Até o desumano e seminal Hellraiser, dirigido pelo Marquês de Sade moderno, Clive Barker, apesar de ter a necrofilia como um de seus temas centrais, aborda a questão com luvas de pelica.
 Uma das únicas produções até hoje com coragem para encarar de frente este desvio sexual e mostrá-lo em suas características mais íntimas e grotescas foi a obra-prima do Cinema Underground alemão, Nekromantik (Alemanha, 1987), dirigida por Jörg Buttgereit.
 A grande genialidade de Buttgereit em Nekromantik não foi apenas escancarar cenas das mais macabras e absurdas práticas de necrofilia da forma mais explícita que se possa imaginar, proporcionadas pelos brilhantes efeitos especiais splatter típicos do Cinema Fantástico Europeu, mas mostrar os praticantes desta apavorante tara como "pessoas normais" como aquela que você vê todos os dias quando se olha no espelho.
 Além de serem os protagonistas do filme o casal de necrófilos, formado por Rob, um simplório limpador de rua e Betty, sua atraente e ociosa namorada, não possuem visual dark, tiques nervosos ou qualquer tipo de aparência estranha característica da maioria dos vilões de filmes de horror, pois Nekromantik é uma obra além do bem e do mal e muito distante da estereotipada dicotomia mocinho x bandido. Como na vida real, no filme de Buttgereit a  fealdade dos monstros se encontra escondida em seus interiores. O inferno está na alma e não na carne.
 Mas Rob e Betty não são apenas os protagonistas da trama. É através dos olhos deles que o espectador vê a prática  da necrofilia. Como se o casal fosse o diretor do filme e manipulasse a câmera.
 É por isso que somos conduzidos pelo terrível mundo de fetiches repugnantes de Rob e Betty com a maior naturalidade possível, como se estivéssemos visitando um parque de diversões. Os amantes não fazem caras e bocas de malignidade absoluta enquanto trafegam por entre as dezenas de recipientes contendo os mais diversos tipos de órgãos humanos asquerosos e se sentam em mesas decoradas com ossadas, mas conversam amavelmente entre si e preparam o jantar da forma mais trivial possível. É por isso que o ménage a trois entre o faxineiro, sua namorada e a carcaça de um cadáver em adiantado estado de apodrecimento não tem como soundtrack de fundo algum bombástico heavy metal, mas uma encantadora melodia romântica. A cena tampouco é filmada através de uma agressiva edição clipada típica de sequências violentas e doentias, mas por meio de longas e estilizadas tomadas em slow-motion.
 É justamente essa normalidade e romantismo com que as cenas mais repugnantes que se possa conceber são tratadas que faz de Nekromantik uma obra tão perturbadora, incômoda e arrebatadora.
 Ao mostrar o seu filme como um lírico romance, Buttgereit, como se fosse um Nelson Rodrigues grand-guignol, joga o espectador nas vísceras da mais profunda intimidade do casal necrófilo. Exatamente por mostrar a necrofilia pelos olhos de seus praticantes, ou seja, como sendo algo absolutamente normal, e não por meio de um cineasta querendo apenas chocar o espectador com imagens grotescas que a película se tornou tão nauseante e assustadora até a alma.
 São Betty e Rob, duas pessoas perdidamente apaixonadas pela morte e pela decomposição da carne, que estão contando a sua própria história, então nada de desviar a lente da câmera nos momentos mais íntimos do casal, nada de aliviar as sequências mais barra-pesada, para nós, não para eles, com cortes rápidos.
 Com um currículo assim você pode estar imaginando que Nekromantik é uma obra de apelo exclusivamente visual que dialoga apenas com os instintos mais primitivos do ser humano.
 Ledo engano.
 Abaixo da superfície splatterpunk do filme se esconde um profundo oceano do mais aterrador cerebralismo que por meio de metáforas arrepiantes discute as intrínsecas, e que a maioria de nós prefere ignorar, relações que existem entre a vida e a morte e o amor e a violência. Como na cena em que, ao assistirem a um diabólico slasher, os casais de namorados no cinema vão se excitando e se acariciando de forma cada vez mais intensa a medida em que, na tela, a violência, o sangue e o macabro vão se tornando cada vez mais acentuados.
 Ao lado do italiano Ruggero Deodato, o alemão Jörg Buttgereit foi um dos pouquíssimos cineastas a mostrar nas telas sem nenhum tipo de concessão toda a brutalidade, loucura, podridão e miséria da raça humana rejeitadas e escondidas a todo o custo pela sociedade.
 Rebelde e contestador desde cedo, Buttgereit odiou fazer a sua Primeira Comunhão e foi justamente com um presente, uma câmera 8mm, que recebeu em sua formatura desta baboseira cristã que o futuro realizador de Nekromantik conheceu a sua arma perfeita para agredir as instituições e esfregar na cara do Homem "civilizado" o animal que este verdadeiramente é.
 A partir daí Jörg Buttgereit, que além de diretor também é técnico de efeitos especiais, seguiu realizando produções independentes cada vez mais ambiciosas e ousadas como Der Todesking e a continuação de seu clássico: Nekromantik 2, sempre misturando Cinema de Arte e experimentalismo com o mais afiado horror hardcore.
 A exemplo do restante da obra de Buttgereit, Nekromantik é somente para os fortes e absolutamente contra-indicado para espectadores tímidos de estômago delicado e imaginação fraca. Pois a obra demonstra de forma veemente que o Cinema Fantástico é muito mais do que apenas monstros, naves espaciais e elfos. Cinema Fantástico é acima de tudo subversão, rebeldia e liberação. E é por isso que ele encontra em Nekromantik um de seus representantes definitivos!