SlideShow

.
0

O Futuro é Foda!

 Vamos ser sinceros, desde que James Cameron partiu para um cinema mais família, Cronenberg se bandeou para outros gêneros e Paul Verhoeven meio que sumiu do mapa, goste-se ou não, a única esperança para os cinéfilos que curtem uma ficção-científica mais adulta e hardcore se chama Neill Blomkamp.
 Blomkamp possuía mesmo todos os requisitos necessários para se tornar um realizador de filmes que esbugalhassem nas telas o lado mais distópico, negro e fodido da ficção-científica: nascido na África do Sul em 1979, ele sempre foi um aficionado por tecnologia de ponta e cultura geek, mas que viveu em meio a tirania, truculência e miséria proporcionadas pelo regime do Apartheid. Ou seja, Neill Blomkamp cresceu em meio a dicotomia tecnologia alta/vida baixa que é o eterno cerne de qualquer sci-fi desviante, marginal e de esquerda que já existiu.
 Como quase todo o futuro diretor de Cinema Fantástico, Blomkamp iniciou a sua carreira como técnico de EFX produzindo os efeitos especiais de tele-séries cults de ficção científica como Smallville e Stargate SG-1, além de dirigir comerciais de marcas famosas recheados de CGI de última geração.
  Em 2006, ele dirigiu um sinistro curta metragem independente sobre alienígenas intitulado Alive In Joburg que chamou a atenção de um dos mais poderosos e premiados diretores de cinema high-tech da atualidade, Peter Jackson.
  Assim como Neill Blomkamp, Jackson também ficou famoso por misturar em suas produções altas doses de realismo, morbidez e violência mesmo entre as fantasias mais delirantes, ficando fascinado com os alienígenas asquerosos, os cenários sujos, a ambientação techno-decadente e a qualidade dos efeitos visuais de Alive In Joburg. 
  Em 2007, Blomkamp e Peter Jackson uniram forças pela primeira vez por meio dos curta-metragens promocionais para o lançamento do game Halo 3 do console X-Box da Microsoft. O cineasta sul-africano dirigiu enquanto que a Weta, a diabólica empresa de efeitos visuais do diretor de O Senhor dos Anéis, se encarregou dos EFX.
 Apesar da curta duração, esses vídeos de Halo possuíam um visual espetacular, forte e com um realismo singular em produtos relacionados a ficção científica. Os curtas de Blomkamp eram verdadeiras versões espaciais/futuristas de produções de guerra viscerais e intensas como O Resgate do Soldado Ryan e Falcão Negro em Perigo, mostrando soldados humanos e alienígenas assassinos se engalfinhando em combates ainda mais ferozes dos que os elaborados por James Cameron em Aliens.
 Dois anos depois Peter Jackson e Neill Blomkamp se aliaram novamente para uma cartada decisiva que iria convulsionar a ficção científica.
 Distrito 9 (District 9, EUA, 2009) produzido por Jackson e dirigido e escrito por Blomkamp, mostrava o encontro entre seres humanos e criaturas alienígenas sob um prisma nunca visto nas telas até então. Simultaneamente violento, triste, eletrizante, perturbador e com uma marcante influência da fase gore de David Cronenberg, Distrito 9 foi a surpresa ímpar do cinema em 2009. Também foi uma das raríssimas ocasiões em que uma produção de ficção científica foi indicada ao principal oscar da academia. Desde os tempos de O Enigma de Outro Mundo, Aliens e Robocop que uma major de Hollywood não utilizava efeitos visuais e câmeras de última geração para produzir uma sci-fi que não possuía visual bonitinho e que não fosse endereçada para toda a família, muito pelo contrário...A estréia de Neill Blomkamp em longas-metragens era uma daqueles saudáveis aberrações que surgem nos cinemas de vez em quando: uma produção de espírito radical e independente, mas bancada por um grande estúdio.
 Com o acachapante sucesso de público e crítica que foi Distrito 9 era óbvio que o próximo projeto do diretor sul-africano fosse esperado com ansiedade e que todos os passos deste fosse, a partir de então, observado com olhos de microscópio eletrônico pelos fãs de ficção científica e pela comunidade geek.
 Quatro anos depois de sua estréia Blomkamp finalmente retorna as telas com uma outra sci-fi, intitulada Elysium ( EUA, 2013). Mas Elysium possuía algumas diferenças em relação a Distrito 9: era ainda mais pesado, provocativo e sombrio do que este. Beleza!
 Outro contraste entre Distrito 9 e Elysium é que o primeiro, apesar de toda a sua parafernália eletrônica e tecnológica, se passava em nossos dias, o que foi, de certa forma, uma barreira para a criatividade dark de Blomkamp, enquanto que o mundo do segundo está situado cerca de 150 anos no futuro.
 Agora Blomkamp possuía um universo infinitamente maior, e mais cruel, para poder dissecar todas as suas obsessões com relação a política, injustiças sociais e o lado escuro do ser humano.
 Portanto, apesar de se passar em um futuro longínquo com direito a uma estação espacial e repleto de naves estelares, não espere nada de space ópera, robôs engraçadinhos, cenários lindos e valores morais em Elysium. Aqui o negócio é cyberpunk em estado bruto!
 Elysium é uma ficção científica em que o vilão que deseja destruir a humanidade não é uma inteligência artificial mega-poderosa, algum monstro alienígena ou um exército de androides assassinos, mas uma ameaça muito mais global e que já vem sugando nosso sangue desde a Idade Média: o capitalismo.
 Assim como em sua obra anterior, em Elysium Blomkamp ataca o problema de frente, sem concessões, frescuras ou muitas metáforas.
 É o ano de 2154, e se você leitor tem um pouco de neurônios nesse seu cérebro e costuma olhar, pelo menos as vezes, para o mundo ao seu redor já deve imaginar que, se nossa sociedade continuar seguindo à risca a cartilha escrita por bancários multimilionários e mega corporações, o século XXII não vai ser algo  muito agradável de se ver...É isso aí, a Terra daqui em torno de 150 anos será um imensurável gueto global. Uma favela da Rocinha planetária habitada e controlada pela escória da humanidade: traficantes, ladrões, viciados, assassinos, hackers, mercenários, doentes e miséria, muita miséria se espalhando, sem fim, para todos os lados.
 Depois de sugarem como vampiros todas as reservas naturais de nosso planeta, os yuppies e milionários se mudaram para uma grandiosa e luxuosíssima estação espacial localizada na órbita, e portanto acima de toda a imundície, terrestre chamada Elysium.
 Lá, poucos privilegiados, leia-se endinheirados, desfrutam de tudo aquilo que eles destruíram na Terra: ar puro, natureza límpida, tratamentos médicos de ponta e uma vida tranquila e organizada.
 Aqui embaixo, no inferno, aqueles que não sucumbiram a marginalidade se tornaram operários chão de fábrica que trabalham para os ricos com o intuito de melhorar ainda mais o padrão de vida destes em Elysium.
 Como vocês podem ver pouca coisa mudou em 150 anos, apenas pioraram um pouco mais...
 De resto, Elysium parece ter saltado diretamente das eletrizantes páginas tanto de romances cyberpunk barra-pesada como Piratas de Dados e Tempo Fechado, de Bruce Sterling e Count Zero, de William Gibson, quanto de HQs de ficção científica e ação violentíssimas e sinistras como Gunnm, de Yukito Kishiro e Elektra Assassina, de Frank Miller e Bill Sienkiewicz: um herói marginal e decadente, mercenários torpes, psicopatas ultra-pervertidos, executivos frios como a lâmina de uma navalha, toneladas de armamento high-tech pesado, fusão agressiva entre carne/máquina que rouba a humanidade de seres humanos e os transforma, praticamente, em ciborgues e muita, muita ação noir repleta de selvageria, violência escatológica e um realismo perturbador.
 A adrenalina nos filmes de Blomkamp não tem nada da estilização digitalizada dos longas da série Matrix.
 Aqui, o visual futurista e os efeitos computadorizados de ponta estão sempre mesclados a sangue, suor, lágrimas, dor e carne crua. Com cenas de ação instintivas estilo Cinema-Corpo, a lá William Friedkin e Paul Gengrass, sempre filmadas em velocidade máxima e o mais de perto possível para mostrar ao espectador que não se está tentando enganá-lo, que a coisa é para valer.
  É devido a isso que esse novo Enfant terrible do Cinema de Ficção Científica detesta gravar suas cenas dentro do ambiente artificial de um estúdio em meio a telas de fundo verde. Tanto Distrito 9 quanto Elysium tiveram a maior parte de suas tomadas gravadas em favelas de verdade, o primeiro em um gueto sul-africano, o segundo nas ruas imundas de um miserável bairro mexicano, mixando, de forma absolutamente impecável e verossímil, o CGI e os elementos fantásticos com toda a sordidez e a sujeira do mundo real.
 Outra característica notável na obra de Neill Blomkamp é que, da mesma forma que James Cameron, a descrição que o diretor faz de armas, veículos, robôs e equipamentos de alta tecnologia é tão vívida e detalhada que se tornam quase personagens de seus filmes. Em Elysium as câmeras penetram no interior das entranhas do hardware expondo de forma palpável o funcionamento de máquinas futuristas que ainda não existem. Naves espaciais são sujas e pingam óleo, exo-esqueletos cibernéticos de guerra estão enferrujados e repletos de "cicatrizes" de antigas batalhas, metralhadoras e lança-mísseis são riscados e arranhados como devem ser qualquer tipo de equipamento usado em combates. Além disso, todos os equipamentos e produtos mostrados em Elysium possuem marcas do mundo real, como Kawasaki, Bugatti, Nissan, etc.
 Enfim, tudo no filme foi feito e construído para, ao olharmos para uma nave espacial na tela do cinema, sentirmos estarmos vendo algo tão tangível quanto um automóvel estacionado na esquina de nossa casa.
 Todo o realismo e detalhamento do sinistro mundo de Elysium foi feito com o único propósito de tornar o roteiro deste ainda mais provocativo, perturbador e polêmico. Pois, a exemplo de Metrópolis, de Fritz Lang, THX-1138, de George Lucas, Blade Runner, de Ridley Scott e outro marcos do Cinema de Ficção Científica Distópico, o segundo longa de Neill Blomkamp, assim como o seu primeiro, é uma obra que convida ao debate. Um filme que não quer agradar a ninguém e sim incomodar a todos...
 Quanto a nós, espectadores de cinema do Terceiro Mundo, a primeira, e mais forte, sensação que este longa nos provoca em seus primeiros minutos de exibição não é tanto a de nos sentirmos incomodados e assustados, mas sim uma desalentadora sensação de identificação. Pois para nós o futuro de daqui a 150 anos de Elysium já chegou faz tempo...