SlideShow

.
0

O VERDADEIRO GRAND GUIGNOL

Quem acredita, como eu acreditava, que os franceses são sinônimo de, apenas, gestos afetados, perfumes caros e romantismo vai tomar um choque de 75 miliampères ao assistir aos dois socos na boca do estômago em forma de filme chamados Alta Tensão (Haute Tension/ França, 2003), de Alexandre Aja e Martyrs ( França, 2008), de Pascal Lauguier.
 Os dois fazem parte de um movimento intitulado Cinema Extremo Francês, que, além das obras de Aja e Lauguier, também incluem Frontièrs (2007), de Xavier Gens, o alucinantemente maléfico À L' Intériur (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury, entre outros.
 Essa nova onda do Cinema Francês, juntamente com as produções de terror asiáticas, está fazendo atualmente o mesmo que Hollywood e, principalmente, as películas italianas, fizeram com o Cinema Fantástico nas décadas de 1970/1980: virar o gênero de ponta-cabeça e elevar os níveis de horror, violência apelativa, sadismo e originalidade a patamares tão inacreditavelmente altos que se tornam, por vezes, uma verdadeira tortura voyeurística  até mesmo para os fãs de gore.
 Coincidentemente, Alta Tensão foi o filme que deu o chute, melhor seria dizer facada, inicial no Cinema Extremo Francês.
 O longa de Aja é um giallo moderno, só que ainda mais ousado e radical em termos de violência celerada do que as já nauseantes produções italianas comandadas por Dario Argento, Lucio Fulcie, Mario Bava, etc.
  Na verdade, Alta Tensão é um encontro dos ultra-sádicos serial killers dos clássicos giallos com os banhos de sangue absurdos de pedradas como The Evil Dead, Fome Animal e os filmes de Takashi Miike, com suas cenas de corpos feitos em pedaços por armas de fogo de grosso calibre, serras-elétricas, facões enormes, etc.
 Mas, para mim, o que transformou mesmo Haute Tension em um clássico, e o seu principal diferencial em relação a outras produções do gênero, foi o seu roteiro intrincado.
  Da mesma forma que nos filmes de ação, são raros os exemplares no Cinema de Horror que possuam scripts complicados. Por mais fascinantes e revolucionários que vários filmes de terror possam ser em matéria de visual, técnica, sangue e horror, encontrar um que, a despeito de tudo isso, também consiga provocar um suor frio não apenas nos poros do espectador, mas também em seus neurônios é algo difícil de se encontrar.
 Haute Tension é um daqueles filmes que, no interior de suas entranhas, esconde um outro filme....E é no momento do orgasmo da descoberta desta filme escondido que você começa a juntar as sanguinolentas peças do quebra-cabeças proposto pelos realizadores da produção: cenas sutis e até mesmo certos sons que talvez tenham passados despercebidos aos seus olhos, mas não ao seu cérebro, são repentinamente puxados do fundo de sua memória de espectador e, como um infeliz que a recém tenha conseguido montar uma Configuração dos Lamentos e escancarado as portas do Inferno, você descobre que o que já era horripilante sempre pode ficar ainda pior.
 Essas reviravoltas excruciantes da trama são conduzidas por explosões de violência splatter espetaculares e exageradas, a cargo do lendário Gianneto de Rossi (Zombie, Emanuelle in America, Conan, Rambo), ação incessante que deixa a adrenalina do espectador sempre no pico e um suspense que não vai ter o mínimo de pena em dilacerar os seus nervos.
 Mas a principal inspiração e arma de Haute Tension é o cinema de Alfred Hitchcock, onde toda a tensão insuportável, horror e violência tinham as suas origens profundamente enraizadas em  violentos desejos sexuais latentes, comportamentos-tabu reprimidos e no lado mais bestial do ser humano.
 Inclusive, é muito fácil imaginar que se o diretor do revolucionariamente assustador Psicose vivesse nos dias de hoje Alta Tensão seria o tipo de filme que ele estaria realizando.
 E costurando, com total domínio, esse mix de efeitos especiais repugnantes, roteiro inteligente e Hitchcock do século XXI está a mão de mestre de Alexandre Aja. Que devido ao impacto causado por este seu terceiro longa-metragem fez com que os produtores de Hollywood saíssem correndo para a França contratá-lo para comandar produções de terror nos Estados Unidos.
 Em 2003, Alta Tensão arrebentou em Sitges, --- festival de cinema fantástico sediado na Espanha que já premiou diversos clássicos do cinema extremo como À Meia-Noite Levarei a Tua Alma, de José Mojica Marins, Rabid, de David Cronenberg, entre outros ---, conquistando os prêmios de melhor diretor, melhor atriz (Cécile De France) e melhor  maquiagem (Giannetto de Rossi).
 Martyrs, de Pascal Lauguier extrapola tudo o que foi mostrado em Alta Tansão. Se o debut de Aja é uma história protagonizada por personagens humanos que mergulham em um inferno de ultra-violência, loucura e horror, em Martyrs são os próprios inferno, horror, loucura e ultra-violência os personagens principais do filme, restando aos humanos apenas o papel de meros coadjuvantes...e vítimas.
 Se, ainda hoje, a grande maioria das produções de horror com elementos sobrenaturais ainda bebem na ancestral fonte de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe com seus demônios pré-históricos, rituais de magia negra primitivos, estética gótica-medieval e violência subliminar, Martyrs tira toda a sua inspiração do grand-guignol  moderno do artista transmidia de horror, Clive Barker que possui as raízes de sua imaginação patológica na obra tétrico-futurista-pornô de H.R.Giger e no peso e na velocidade politicamente incorretos do heavy metal e do punk rock.
 O filme de Pascal Lauguier, assim como Alta Tensão, também investiga as atrocidades cometidas por assassinos seriais implacáveis. A diferença é que aqui os matadores enlouquecidos são os “heróis” da trama. Parafraseando a chamada do trailer de outro cult de horror, Um Drink No InfernoEles mataram dezenas de pessoas e são os heróis do filme...imagine os vilões.
 A diferença entre a, também excelente, obra de Rodriguez e Trantino e o filme de Lauguier é que enquanto o primeiro bebe direto na fonte splatestick  de Peter Jackson, Sam Raimi, Re-Animator  e a A Volta dos Mortos-Vivos oferecendo ao espectador uma montanha-russa do mais sádico e descompromissado humor negro, Martyrs, apesar de sua trama vividamente imaginativa, transborda seriedade com a sua atmosfera gótica contemporânea de absoluta austeridade e contundência dignas de o O Exorcista e Hellraiser. Uma obra destinada exclusivamente a espectadores adultos.  
 O filme se tornou tão impactante e profundo porque une psicopatas com fantasmas. Dois elementos do Cinema Fantástico que já são intensos separadamente e que quando misturados resultam em uma receita absolutamente explosiva.
 Martyrs não possui heróis. É um universo de puro niilismo habitado exclusivamente por seres maléficos, predadores cruéis e assassinos insanos onde os vivos e os mortos disputam e se dilaceram entre si para verem quem é a criatura mais animalesca e impiedosa.
 Seguindo os passos do horror visionário e feroz de Clive Barker, a origem de todo o mal e criaturas sobrenaturais que dominam Martyrs não é nenhuma maldição sobre-humana, pactos com o Diabo ou feitiçarias poderosas, mas sim o lado negro do Homem. Aquela “sombra” especializada em praticar atos de barbárie impensáveis para qualquer pessoa civilizada, mas que se esconde nas profundezas do cérebro humano e que todos nós estamos sujeitos a sermos dominados de uma hora para outra.
 Martyrs redobra o cerebralismo mostrado em Alta Tensão. Aqui nenhum susto é provocado de forma simples e gratuita. A exemplo de Hellraiser, dos contos Pavor e Vade Retro, Satanás (da coletânea Livros de Sangue) entre outras obras de Barker, todos os elementos assustadores do filme de Lauguier são puzzles de carne e sangue e intrincadas filosofias macabras que a maioria dos espectadores só conseguirão montar e interpretar muito tempo após o longa haver  terminado. Tudo, é claro, amparado pelos efeitos nojentos de maquiagem mais irretocáveis que se possa imaginar e que não perdem em nada para o fantástico trabalho de de Rossi em Alta Tensão.
 Também a exemplo de Hellraiser, a principal chave para a compreensão da trama são as sensações físicas intensas e extremas. E tanto aqui quanto no universo dos cenobitas é o sadismo e o desejo por prazer e sofrimento que abrem as portas para uma desconhecida dimensão sobrenatural  de malignidade inimaginável.
 A diferença entre o mítico filme de Clive Barker e Martyrs é que, enquanto que no primeiro a porta de entrada para um universo de dor e estase é a árdua montagem de um misterioso cubo rubik, no segundo é o próprio orgasmo de dor e sofrimento provocado pelo dilaceramento da carne que escancaram os portões do inferno em uma espécie de prévia sangrenta do que está por vir.
  Assim como em todo o desenrolar do filme, o final de Martyrs também não oferece um desfecho convencional e tranquilo para os espectadores. Deixando para nós mesmos a terrível tarefa de tirarmos nossas próprias e horripilantes conclusões.
Apesar de serem dois dos responsáveis por jogarem os filmes de horror franceses de cabeça no explotation e no lamaçal de sangue e vísceras do Cinema Extremo, as carreiras de Alexandre Aja e Pascal Lauguier tomaram rumos bem distintos uma da outra.
 Aja debutou no cinema em 1997 com um curta-metragem, hoje muito difícil de se encontrar, intitulado Over the Rainbow que foi indicado para uma Palma de Ouro no Festival de Cannes. Dois anos depois realizou Furia, obra mais inclinada para o drama e a ficção científica do que para o horror.
 Em 2003, Aja escancarou todo o seu radicalismo com o esmagador  Alta Tensão.  Com o sucesso de seu giallo francês, Alexandre Aja seguiu o mesmo caminho de sua atriz em Furia, Marion Cotillard, e foi importado por Hollywood para realizar superproduções de horror. Nesta nova etapa de sua carreira o primeiro desafio de Aja foi realizar, em 2006, para a Fox Atomic ( divisão da 20th Century-Fox especializada em produções de terror, comédia e ação) uma refilmagem do cultuadíssimo explotation  de 1977, Quadrilha de Sádicos( The Hills Have Eys), de Wes Craven. O resultado não poderia ter sido mais impressionante, pois o diretor francês conseguiu um dos feitos mais difíceis no meio cinematográfico, fazer um remake que supera o original.
 Dois anos depois veio Espelhos do Medo (Mirrors) um horror com efeitos especiais de última geração na linha de Poltergeist e estrelado por Kiefer Sutherland. A obra dividiu opiniões, mas Aja provou que conseguia realizar um filme assustador e repugnante mesmo com a inserção de CGI que é muito criticado pelos fãs de terror que acham, na maioria das vezes com razão, que efeitos digitais acabem limpando muito a violência e as monstruosidades nas produções do gênero. Entretanto, assim como nas bandas de metal industrial, o diretor francês utilizou os computadores e a tecnologia de ponta para sujarem ainda mais as cenas de horror e sem artificializa-las.
 Em 2009, ao converter o seu Piranha para o controverso formato 3-D digital, o cineasta francês seguiu mostrando que sempre será possível ao diretor de produções de horror se manter atualizado com as novas tecnologias sem que, para isso, precisar macular o gênero ou torna-lo mais palatável. Piranha foi a segunda refilmagem assinada por Alexandre Aja, agora  tendo como base o original, que, por sua vez, era um pastiche do Tubarão, de Spielberg, dirigido por Joe Dante e produzido pelo lendário Roger Corman em 1978.
 Este segundo remake de Aja também marcou uma mudança em sua carreira: se até então toda a obra do diretor era composta por filmes fantásticos/de horror sérios e densos, com Piranha ele mergulhou de cabeça no deboche sanguinolento e descompromissado do splatstick/terrir. E mais uma vez o talentoso cineasta deu conta do recado entregando uma obra que pode ser comparada a  The Evil Dead 2, Tóquio Gore Police, A Volta dos Mortos-Vivos e outros clássicos  deste subgênero. Fazendo as plateias, pela primeira vez em seus filmes, além de sentirem medo e asco também darem boas gargalhadas.
 Dois anos antes do remake de Piranha, Aja assumiu a função de produtor, e também roteirista,  administrando o thriller, e orientando o diretor deste, Frank Khalfon ( um dos atores do cast de Alta Tensão), P-2 .
 Considero P- 2, até agora, a única cagada de Aja. Suspensezinho genérico e formulaico que segue à risca a cartilha do Cinema Americano em achar que todos os espectadores possuem a mentalidade ultraconservadora e inocente de uma criança amish de dez anos de idade e tudo o que diz respeito a sexo e violência deve ser tratado da forma mais velada possível.
 Em compensação, cinco anos após o lançamento de P-2, a dobradinha Aja (produtor) e Khalfon (diretor) emplacaram o ultra-visceral O Maníaco (Maniac/EUA, 2012). Horror que mistura gore extremo com uma narrativa sofisticadíssima. Maniac foi baseado em um longa homônimo de 1980 dirigido por William Lustig (Maniac Cop).
 No momento, os fãs deste cineasta francês especializado em sangue, tripas, morte e loucura esperam ansiosamente pela sua adaptação para as telas do livro Horns, do incensado escritor de Literatura Fantástica Joe Hill, leia-se "o filho de Stephen King", protagonizado por Daniel "Harry Potter" Radcliffe.
 Ao contrário de Alexandre Aja, Pascal Lauguier, infelizmente, não possui uma carreira tão prolífica.
 Iniciou sua escalada cinematográfica como ator coadjuvante no obscuro, e sensacional, cult Pacto dos Lobos ( Le Pacte des Loupes/França, 2001), de Cristopher Gans ( Crying Freeman, Terror em Silent Hill), um eletrizante longa de artes marciais com elementos fantásticos estrelado por Mark Dacascos e Monica Bellucci. Além de participar do cast, Lauguier também dirigiu o making off  da produção.
 No mesmo ano, o pai de Martyrs comandou seu primeiro longa metragem: Éme Sous Sol. Uma obra que possui pouquíssimas informações em português na Rede.
 Sua próximo trabalho foi A Profecia dos Anjos ( Saint Ange/França, 2004). Produzido por Cristopher Gans, esta obra de Lauguier foi elogiada pela crítica especializada em Cinema Fantástico pelo seu visual rebuscado. Entretanto, essa mesma crítica torceu seu nariz para o roteiro do longa que considerou confuso e mal resolvido.
 Após o sucesso e o impacto causado por Martyrs, Pascal Lauguier comandou a co-produção ente EUA e Canadá O Homem das Sombras ( The Tall Man, 2012 ) Uma nova aventura sobrenatural protagonizada pela canastrona boazuda Jessica Biel que, a exemplo de Saint Ange, dividiu as opiniões.
 Pelo visto, o "problema" da obra de Lauguier são os roteiros densos e complexos de seus longas. Algo que, para uma platéia adolescente muito mais acostumada com Pânico e genéricos do que com O Iluminado é óbvio que se tornará um empecilho.
 Enfim, Aja, Lauguier, a dupla Bustillo/Maury, entre outros, vieram para nos mostrar que os filmes de horror vão muito além das fronteiras dos EUA e de Hollywood e dos horripilantes, no mau sentido, Sobrenatural e Invocação do Mal.






0

I TRE VOLTI DELLA PAURA: O HORROR, PEDAÇO A PEDAÇO...

 Herdeiros das revolucionárias HQS de horror Tales From The Crypt e Creepy  das editoras E.C. e Warren respectivamente e das seminais séries de tv Além da Imaginação (Twilight Zone) e Galeria do Terror (Night Gallery) do genial Rod Serling, os longas de terror divididos em episódios independentes ou interligados, à décadas, são uma tradição no Cinema Fantástico.
 De Creepshow (EUA/1982): uma união de forças entre George Romero e Stephen King que homenageava os gibis da E.C. e Contos da Escuridão (Tales From the Dark Side, EUA/1990) de John Harrison, que também tem a mão de Romero, pois é baseado em uma série de televisão homônima criada pelo pai dos zumbis modernos na década de 1980, passando pelo oriental Três Extremos (Saam Gaang Yi, Japão/Hong Kong, 2004), que junta três dos maiores realizadores do Cinema Fantástico Asiático: Fruit Chan, Park chan-wook e Takashi Miike, e Grindhouse (EUA/2007) da dupla Rodriguez/Tarantino,  chegando aos recentes ABC da Morte (ABC of Death/EUA, 2012) e VHS 1 e 2 (EUA/2012/2013) que são um verdadeiro quem é quem entre os diretores mais talentosos e sádicos em se tratando de ação, horror e ficção científica do cinema atual.
 Todas essas produções, em maior ou menor grau,  deixaram sua marca na trajetória do Horror Episódico nas telas. Algumas pela sua incontestável qualidade, outras por uma indisfarçável mediocridade.
 Entretanto, o exemplo mais paradigmático dessa irregular estirpe cinematográfica é o italiano As Três Máscaras do Terror (I  Tre Volti Della Paura/1963) dirigido pelo titânico cineasta Mario Bava. Tanto os estudiosos da obra do diretor quanto os aficionados por As Três Máscaras do Terror já estão cansados de ouvirem falar que a versão em inglês do título do filme inspirou os integrantes originais do Black Sabbath a renomearem sua banda, que então se chamava Earth, e a partir de então entrarem para a história do rock pesado. Portanto, não vou me ater muito a este tópico. Até porque I Tre Volti Della Paura é mais do que, "simplesmente", a película que emprestou seu título a primeira, e uma das maiores, bandas de heavy metal de todos os tempos. Muito mais...
 Fragmentado em três funestos e aterradores episódios distintos este quinquagésimo terceiro longa do, já então veteraníssimo Bava, teve como base para todos os seus segmentos obras literárias de diferentes autores.
 Acredito que aqueles que, a exemplo de mim, além de cinema e produções de horror também sejam entusiastas de literatura devem ter ficado arrebatados quando leram nos créditos de As Três Máscaras do Terror os nomes "Tolstói", "Chekov" e do escritor francês proto-lovecraftiano "Guy de Maupassant", autor do incrível conto O Horla.
 Como os créditos não especificavam qual episódio do longa correspondia a obra de qual autor tive que consultar o expert Paulo Blob Teixeira que é crítico e resenhista dos sites Boca do Inferno e Gore Boulevard.
 Segundo Paulo, a coisa está estruturada da seguinte forma: o primeiro episódio, O Telefone (Il Telefono), seria, supostamente, basado em um conto de Maupassant, entretanto algumas fontes o creditam a um caliginoso escritor norte americano chamado F.G. Snyder. Agora atenção fãs de Guerra e Paz e de Literatura Russa: o tal Tolstói, cujo conto A Família do Wedalak serviu de base ao segundo episódio O Wurdulak ( I Wurdulak), não é o Leon e sim Aleksei Tolstói, que era primo do cara.
 Da mesma forma o terceiro, e derradeiro, episódio, A Gota D'Água ( La Goccia D Acqua), não é de autoria de Anton Chekov, mas sim de seu irmão, Ivan Chekov.
 Entretanto, isso não desvia nem por um milímetro sequer I Tre Volti Della Paura do que ele realmente é: uma obra prima da cabeça aos pés.
 O primeiro episódio, O Telefone, que inicia após uma breve introdução do mítico Boris Karloff que apresenta o longa ao espectador no melhor estilo Rod Serling em The Twilight Zone, é um mini giallo que, em cerca de trinta minutos, consegue concentrar todas as principais características do gênero: o assassino absolutamente impiedoso, o amalgama entre perversidade e sensualidade e aquela sofisticadamente maldosa condução do suspense a lá Hitchcock que não tem pena em levar a tensão e o medo do espectador ao limite do insuportável.
 Uma inesperada reviravolta e um implícito, mas excitante, envolvimento homossexual entre as protagonistas fecha O Telefone com chave de ouro.
 No segundo capítulo, O Wurdulak, Mario Bava mergulha no mesmo magnífico ambiente gótico medievalesco de seu La Frusta e il Corpo, lançado logo após As Três Máscaras do Terror.
 É a partir deste episódio que o sobrenatural invade o filme de forma gélida e implacável. Com o diretor trocando o medo do, à época, moderno giallo pelo primitivo arrepio na espinha proporcionado pelo romantismo tétrico de obras como Frankstein e Drácula. A trama gira em torno de uma família assombrada por vampiros, os tais wurdulaks do título, numa cabana perdida, pelos nomes dos personagens em alguma região selvagem e/ou rural da Rússia, em meio a névoas fantasmagóricas, montanhas desoladas, florestas escuras e ruínas de castelos ancestrais. A beleza plástica de O Wurdulak é estonteante e macabra nos mínimos detalhes. Impossível afirmar quais os tipos de cenários deste segmento são os mais horripilantes: as locações naturais ou as cenas gravadas em estúdio.
 A fotografia ultra dark de Ubaldo Terzano e do próprio Mario Bava é tão densamente escura que se torna quase palpável, iluminando apenas os momentos mais aterradores como faces distorcidas pelo medo intenso e os olhares e expressões predatórios dos vampiros.
 Tudo isso faz de O Wurdulak uma daquelas obras de horror niilistas e inclementes, onde nem mesmo crianças pequenas são poupadas, quando já sabemos, desde os primeiros segundos de exibição, que as coisas vão acabar muito, mas muito mal.
  Como a cereja do bolo, o episódio traz novamente Boris Karloff como o vampiro patriarca em uma interpretação que, mesmo nos momentos que beiram a canastrice, nos transmite uma agoniada sensação de perigo iminente e medo perpétuo.
   A Gota D'Água, o segmento que fecha I Tre Volti Della Paura, marca outra guinada estética e temática em relação aos dois episódios anteriores.
   Se o principal aspecto de O Wurdulak era a escuridão quase impenetrável de suas imagens em um cenário rústico e selvagem, A Gota D'Água é um gótico urbano. Com ambientes sombrios sendo rasgados por fachos de luzes enjoativos e multicoloridos que parecem serem projetados por um estroboscópio enlouquecido. Uma chuva incessante, trovões e anúncios de neon que piscam sem parar sob os telhados de prédios soturnos conferem ao curta um look de noir futurista que antecipa o visual de Blade Runner.
  Enquanto que a história de O Telefone parecia ter saído diretamente das sarcasticamente sangrentas páginas das HQS policiais e de crime da E.C. como Shock Suspenstories, agora Bava bebe diretamente da fonte dos títulos de horror sobrenatural da editora, tais como The Haunt of Fear e Tales From The Crypt.
  Todos os três episódios de As Três Máscaras do Terror são fascinantes e envolventes, entretanto este último é absolutamente impecável e de uma precisão egrégia. Aqui a mistura entre horror e suspense, que beirava a perfeição nos capítulos anteriores, atinge a sua exata fusão.
   É assombrosa a forma como, neste segmento, o diretor consegue extrair toneladas de medo e tensão utilizando, praticamente, um único personagem envolvido em situações banais do cotidiano como, por exemplo, a água que pinga de uma torneira mal fechada.
   O epílogo de As Três Máscaras do Terror, assim como seu prólogo, é apresentado por Karloff, que em uma rápida sequência que mostra o making off da produção, nos arranca de supetão do mundo de I Tre Volti Della Paura de forma cínica e debochada. Um mundo feito de um aterrador jogo de luzes e sobras e habitado por assassinos, fantasmas vingativos e monstros infanticidas.
 Como eu já havia mencionado em minha postagem sobre La Frusta e il Corpo, os filmes do cineasta italiano Mario Bava (1914-1980) são verdadeiras aulas de cinema. Infelizmente este magnífico cineasta é ignorado até mesmo entre muitos fãs de horror e Cinema Fantástico. Fãs estes que babam ao elogiarem várias produções recentes de suspense e terror sem saberem que, muitas delas, devem muito a obra de Bava.
  Só mais uma coisa: ao terminar de ler esta resenha, leitor, certifique-se de que as portas e janelas de sua casa estão bem trancadas. E muito cuidado ao passar perto de alguma sombra, pois pode ter um vampiro, ou algo pior, escondido dentro dela. Parafraseando Bóris Karloff no prólogo de As Três Máscaras do Terror: Essas criaturas existem. E adoram sugar o sangue dos vivos... 








 









 





0

Mulheres No Front



 O futuro é guerra!!!
Atari Teenage Riot



Fade in
Manhã de 11 de setembro de 2001: sol brilhante, temperatura amena, céu azul límpido, 0% de nuvens. O inverno macabro e escuro começando o retorno à sua catacumba e cedendo espaço para a alegre e luminosa primavera. Eu caminho despreocupado pela rua achando que nada pode estragar aquela afável manhã...
 De repente, começo a perceber um padrão que se repete: várias pessoas ao meu redor comentando, com um misto de surpresa, espanto e incredulidade, sobre um ataque terrorista aéreo nos Estados Unidos.
 Hoje, olhando para atrás, eu acredito que foi naquele exato instante que o Século XXI havia realmente começado para mim e para o resto do Mundo.
 Não dou muita bola para os comentários, afinal, minha geração tinha crescido com noticias sobre guerras e violência dividindo espaço na tv com desenhos animados, seriados e novelas.
 Chego em casa, ligo a televisão: todos os canais mostrando a mesma coisa: uma das gigantescas torres do World Trade Center cospe fogo e fumaça por todos os lados.
 No Plantão de Notícias da Rede Globo o jornalista Carlos Nascimento narra o fato com o mesmo tom de voz tenso e incrédulo da maioria das pessoas que estão vendo aquela imagem simultaneamente pelos quatro cantos do Mundo.
 Parece que estamos vendo um filme...É a fala de Nascimento que fica marcada a ferro e fogo em minha memória.
 De repente, ao vivo, em tempo real, eu vejo a História se desenrolar em frente aos meus olhos: o segundo avião perfura a outra torre do WTC como uma faca, uma lança, um míssil. Uma gigantesca língua de fogo aravessa verticalmente a torre de uma ponta a outra.
 Nascimento, como o resto do Mundo naquele momento, surta: grita, não fala coisa com coisa.
 FIM DO MUNDO! CAOS! TERCEIRA GUERRA MUNDIAL! São os únicos pensamentos que tomam conta da população planetária como se fossem uma pandemia global que se espalha a velocidade da luz.
 Enquanto isso, eu ainda não havia me dado conta de que havia tido o privilégio de assistir ao vivo ao maior ataque terrorista da história. Muito obrigado Mundo moderno.
 Fade out

Fade in
 Uma noite qualquer no início dos anos 1980: as imagens em preto e branco do Jornal Nacional em minha velha televisão Phillips mostram aquelas mesmas notícias de sempre que de tão triviais, mesmo para uma criança abaixo dos dez anos de idade como eu, não impressionam mais: fanáticos do Oriente Médio metem fogo ao próprio corpo, cidades destruídas em meio a desertos infernais, tanques de guerra, rolos de fumaça negra, crianças chorando de fome, mães desesperadas, homens feios de pele escura gritam e apontam metralhadoras para as câmeras dos jornalistas. Guerra Santa. Guerra do Petróleo. O aiatolá Khomeini  é o Bin Laden oitentista.
 Fade out

Fade in
 1991: a jurássica Phillips P&B deu lugar a uma National/Panasonic colorida. A televisão evoluiu, mas as imagens que ela exibe não mudaram muito: ventos e tempestades de areia fazem as chamas de corpos carbonizados dançarem loucamente. Maquinário de guerra pesado trocam os desertos do Irã pelos do Kwait. Soldados americanos armados até os dentes com o mais letal arsenal high-tech se dilaceram com guerrilheiros árabes miseráveis armados até os dentes com o mais letal fanatismo religioso.
 Poços de petróleo vomitam chamas gigantescas como se fossem as bocas do Tártaro.
 O que muda é que agora esta é a guerra das máquinas, dos computadores, da cibernética, da alta tecnologia, das comunicações instantâneas.
 Pela primeira vez um conflito bélico é transmitido em tempo real para todos os lares do Mundo.
 O massacre virou um reality show. A carnificina é um vídeo-game. É a guerra do futuro.
 Fade out                      


  Ok. Os três parágrafos acima servem como uma rápida síntese para mostrar ao leitor um panorama geral do histórico do caldeirão fervente de sangue, suor, facciosismo religioso/político e cobiça assassina que é o Oriente Médio desde a década de 1980, na verdade as tretas com os árabes vem desde a época das cruzadas, mas aí eu eu vou acabar digitando um tratado de História Bélica..., e expor que a jihad terrorista muçulmana, a décadas, já era uma bomba atômica que ameaçava explodir sobre as cabeças de nós, ocidentais, a qualquer instante.
 Entretanto, foi só após o 11 de setembro, quando a bomba atômica, de fato, explodiu, que as mídias e a cultura pop resolveram explorar o problema de maneira mais séria e aprofundada.
 E é claro que um dos meios de Comunicação de Massa e expressão artística mais influentes e cultuados, o cinema, logo ficou ávido por investigar o avesso e o direito do lado negro do Oriente Médio.
 Ao contrário da intervenção militar norte americana no inferno verde vietnamita em que antes da guerra acabar Hollywood já mostrava na telona as entranhas do conflito, mesmo que de forma torta e nacionalista como em Os Boinas Verdes (The Green Berets/EUA, 1968), de John Wayne e Ray Kellogg, e logo após o fim das atrocidades marciais no Sudeste Asiático, quando as chamas do napalm e o cheiro de sangue inocente ainda estavam bem vívidos na memória do povo norte-americano, o cinema esfregava a cara dos espectadores ianques no lodo de desumanidade que os militares americanos haviam provocado e sofrido no Vietnã através de produções brutais, sombrias e ultra realistas como Amargo Regresso (Coming Home/EUA,1978), de Hal Ashby e Apocalipse Now (EUA, 1979), de Francis Ford Copolla, as conflagrações no Irã, Afeganistão, etc eram abordadas escassamente por cineastas e produtores. E quando o faziam era de forma inverossímil como no legal, mas falacioso, blockbuster Rambo 3 (EUA,1988), de Peter MacDonald. Películas mais sérias sobre o assunto, a exemplo de A Fera da Guerra (The Beast/EUA, 1988), de Kevin Reynolds, eram lançados nos cinemas de forma tímida e logo se tornavam filmes obscuros e esquecidos.
 Mesmo quando os Estados Unidos tinham uma participação direta, como na Guerra do Golfo no Kwait no início da década de 1990, Hollywood, praticamente, não tocava no assunto.
 Pois, como diz o ditado: Pimenta nos olhos dos outros, os "outros" no caso, seria a população miserável, e descartável, do Oriente Médio, é colírio.
 Quando o boing 737 da American Airlines pulverizou em segundos centenas de pessoas inocentes no WTC transferindo todo o horror e o radicalismo da jihad para o coração do Império Capitalista do mundo civilizado, fazendo com que os gringos sentissem o gosto de seu próprio veneno, que Washington, e todos os meios de comunicação norte americanos, se tocou do pepino que tinha em mãos...
 A paulada do 11 de setembro foi tão feroz e traumática que, a princípio, nenhuma mídia teve coragem para abordar o assunto. Várias produções cinematográficas que tocavam em tópicos como terrorismo, explosões ou qualquer outro tema muito violento foram imediatamente descartados. Um exemplo foi o longa Efeito Colateral (Collateral Damage/EUA, 2002). Dirigido por Andrew Davis e estrelado por Arnold Schwarzenegger Efeito Colateral não passava de um típico filme de aventura escapista e feijão com arroz, entretanto como sua trama girava em torno de ataques terroristas teve, à época, seu lançamento nos cinemas adiado indefinidamente. Outra amostra do verdadeiro tabu que se tornou mostrar qualquer ângulo, por mais ínfimo que fosse, que lembrasse a fatídica data foi o fato de a Sony Pictures ter retirado todos os trailers e posters de Homem-Aranha (Spider-Man/ EUA, 2002), cuja trama se passava inteiramente em Nova Iorque, de Sam Raimi que mostravam alguma imagem do WTC.
 Foram necessários onze anos para que Hollywood conseguisse digerir o pesadelo do 11 de setembro e depois regurgitá-lo de forma madura, corajosa e realista. E, claro, também foi necessário um cineasta, ou talvez uma cineasta..., com culhões suficientes para escancarar nas telas, sem nenhum tipo de concessão ou frescura, as consequências do maior ataque terrorista da história.
 A consequência dos ataques de 11 de setembro, lógico, foi a guerra.
 Em 20 de março de 2003, tropas militares dos Estados Unidos, Inglaterra e outros países formaram uma aliança chamada Coalizão e foram à desforra, por terra, água e ar, no Oriente Médio.
 Os nazis e Charlies foram substituídos por guerrilheiros árabes, os kamikazes por islâmicos fanáticos com bombas enfiadas até no cu que se jogavam despudoradamente sobre seus inimigos. Hitler e Mussolini "encarnaram" em Osama Bin Laden e Saddan Hussein respectivamente. As ideologias políticas diabólicas que agora ameaçam o Mundo Livre não se chamam mais Nazismo e Comunismo, mas Taliban e Al Qaeda e o Afeganistão e o Iraque se transformam na Europa da década de 1940 e no Sudeste Asiático dos anos 1960.
 Apesar de produções como Soldado Anônimo (Jarhead/EUA, 2005) de Sam Mendes, World Trade Center (EUA/2006) de Oliver Stone e Voo United 93 ( United 93/EUA, 2006) de Paul Greengrass já haverem abordado o inferno do 11 de setembro sob os mais diversos aspectos foi somente em 2009 que veio à luz o primeiro filme a mostrar sem dó nem piedade as entranhas do campo de batalha no Iraque.
 Guerra ao Terror (The Hurt Locker/EUA, 2009) de Kathryn Bigelow de cara desmistifica o conceito de guerra do vídeo-game pelo qual a intervenção gringa ao Oriente Médio ficou conhecida desde 1990 e que conferiu ao conflito uma aura quase de guerra fria. Provando que, mesmo imersa na mais alta tecnologia, uma guerra será sempre uma guerra com toda a dor, morte, genocídios, corpos despedaçados, medo e rios de sangue que sempre a caracterizaram. Pelo contrário, quanto mais dispõe de mecanismos high tech de destruição mais desumanizado e robotizado se torna o soldado em campo de batalha.
 A obra de Bigelow é um puta thriller de ação que retrata em minúcias o dia a dia insano de um grupo de soldados americanos em Bagdá especialistas em desarmar bombas. Os tais hurt lockers do título original.
 A produção se transformou em um clássico instantâneo da cinematografia bélica, venceu seis oscar, incluindo o primeiro prêmio de melhor diretor concedido à uma mulher na trajetória da Academia e foi comparado a filmes de guerra históricos como Apocalipse Now (EUA/1979) de Francis Ford Copolla e Platoon (EUA/1986) de Oliver Stone.
 Três anos após Guerra ao Terror, Bigelow e o seu roteirista Mark Boal mergulham novamente no hades iraquiano ao levarem para as telas o episódio mais importante, tenso e polêmico do envolvimento norte americana no Oriente Médio desde os anos 1980.
 A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty/ EUA, 2012) relata em pormenores perturbadores a obsessão doentia de um grupo de agentes da CIA em destrinchar o intrincado e mortífero labirinto de pistas falsas, contradições, burocracia e terroristas fanáticos que levará a Osama bin Laden, o todo poderoso da Al Qaeda, apontado como o principal responsável pelos ataques de 11 de setembro e, até a sua morte, o homem mais procurado e temido de todo o planeta Terra.
 Com um plot desta natureza era de se esperar uma verdadeira ode ao ufanismo de Tio Sam. Entretanto Katryn Bigelow despe A Hora Mais Escura de qualquer resquício de patriotada e pieguice entregando um filmaço de suspense e espionagem sombrio temperado com cenas de ação cruas e nervosas que descende diretamente dos desglamourizados, realistas e eletrizantes épicos de ação de Sam Peckimpah, William Friedkin e Walter Hill das décadas de 1970/1980.
 Narrado em um árido tom documental, o cerne de A Hora Mais Escura é o amadurecimento e perda da inocência de Maya (Jessica Chastian), uma agente novata da Agência Central de Inteligência norte americana que, a medida que vai se envolvendo de forma cada vez mais profunda na guerra ao terrorismo vai, gradativamente, perdendo a visão altruísta que tinha do Mundo.
 Um dos principais cérebros por trás da caçada a Bin Laden, Maya, que a princípio se sentia assustada e envergonhada ao presenciar uma "simples" sessão de tortura em um suspeito de terrorismo, vai sendo progressivamente possuída pelo truculento mundo de violência, fanatismo e armas pesadas que explode diariamente ao seu redor e, ao final dos vários anos de estressantes e meticulosas operações militares e de espionagem que levaram a execução do líder da Al Qaeda, a agente se torna tão fria, brutal e politicamente incorreta quanto seus colegas torturadores que, no início, a repugnavam.
 Personagem feminino atípico no Cinema Americano, a agente Maya possui muito mais características daqueles anti-heróis ríspidos e solitários protagonizados por Robert De Niro e Pacino em clássicos barra pesada como Táxi Driver, Serpico e Fogo Contra Fogo do que dos tradicionais papéis românticos e engraçadinhos interpretados por Júlia Roberts, Meg Ryan e Sandra Bullock.
 Aqui, novamente, a exemplo de Guerra ao Terror, a diretora Katryn Bigelow trabalha com a assustadora ideia de que a guerra e a carnificina são tão viciantes quanto uma droga pesada.
 A personagem de Chastian vê a sua rotina diária ser inteiramente consumida e preenchida pela adrenalina da guerra e da obsessão em trucidar Bin Laden. Maya não tem mais vida social, tampouco amigos e não consegue se afastar da zona de conflito mesmo sabendo que a qualquer instante ela possa ser feita em pedaços pela bomba de algum fanático.
 A guerra se tornou o seu crack, a sua heroína. Algo que devora seu corpo e espírito, mas que ao mesmo tempo é a única coisa que a faz seguir em frente em sua vida.
 A operação militar para assassinar Osama Bin Laden realizada pelo secretíssimo Seal Team Six, grupo de soldados de elite composto pelos melhores entre os melhores da Marinha dos EUA, é mostrada com uma riqueza de detalhes e realismo assombrosos, lembrando muito mais as táticas amedrontadoras do BOPE nas favelas do Rio em Tropa de Elite do que as epopeias bélicas esfuziantes de Braddock e Rambo. A sequência é filmada de forma ágil e seca, sem trilha sonora épica ou qualquer outro elemento que exalte coragem, heroísmo ou patriotismo.
 Pelo contrário, armados até os dentes e utilizando sofisticadíssimos óculos de visão noturna, que confere aos soldados uma aparência robótica fria e assustadora, os membros do Team Six vão eliminando qualquer homem ou mulher que surja em sua frente enquanto penetram no covil do líder da Al Qaeda mostrando que os soldados que executaram o líder máximo do terrorismo mundial não eram campeões da verdade e da justiça a serviço do mais fraco e oprimido, mas apenas assassinos profissionais competentíssimos e, provavelmente, muito bem pagos.
 A Hora Mais Escura, assim como os demais trabalhos de Bigelow, pertencem, em minha opinião, a um sub-gênero problemático do Cinema de Ação: os filmes de ação para adultos.
 Problemático não no sentido de qualidade, mas no de encontrar o seu público. Esmagados entre os filmes de ação convencionais, aqueles com roteiro repleto de furos gritantes e script que parece ter sido redigido por um débil mental, que tem como seu público alvo adolescentes que ainda acreditam que o Mundo é uma gigantesca Disneylândia e que medem o valor de um filme apenas pela quantidade de tomadas com CGI que são jogadas por minuto na tela e por dramas chatos repletos de lições de moral que os espectadores mais maduros parecem acharem que tem obrigação de assistirem para se sentirem mais intelectuais, os filmes de ação e aventura adultos são ignorados tanto pelo público mais jovem que torce o nariz para a complexidade do roteiro, se assusta com o realismo das cenas de violência e não tem paciência para um longa de aventura onde adrenalina, diálogos inteligentes e assuntos intrincados caminham lado a lado, quanto pelos cinéfilos adultos que, geralmente, pelo trailer e o cartaz os confundem com os filmes de ação tradicionais endereçados à platéia ten.
 Além de Katryn Bigelow os únicos outros cineastas de Hollywood em atividade hoje em dia com coragem para realizar longas de ação culhudos são Michael Mann (Fogo Contra Fogo, Miami Vice), Paul Greengrass ( Ultimato Bourne, Capitão Phillips) e o revolucionário Quentin Tarantino.
 Embora as produções destes cineastas sejam, quase sempre, elogiadas pela crítica dificilmente alguma de suas obras entrará para a lista das Maiores Bilheterias de Todos os Tempos. E resultam, como no caso dos subestimadíssimos filmes de Michael Mann, geralmente, em fracassos financeiros que são rapidamente esquecidos e se tornam obscuros cult movies.
 Quase sempre esse tipo de filme acaba encontrando seu nicho de admiradores entre os entusiastas de produções de horror heavy, filmes alternativos e de arte que estão mais acostumados a experimentalismos cinematográficos, temáticas radicais e cenas fortes.
 Um ponto que me deixou intrigado em relação a crítica "especializadas" sobre Guerra ao Terror e A Hora Mais Escura  foi o fato desta ter se surpreendido por uma obra tão visceral ter sido dirigida por uma mulher.
 Ora, só um cinéfilo pirralho que nasceu ontem ou alguém que desconheça completamente a trajetória de Katryn Bigelow para se abismar por toda a crueza e truculência de Zero Dark Thirty terem saído de uma mente feminina.
 Desde meados da década de 1980 que essa californiana, hoje uma sessentona enxuta que ainda tem muita adrenalina para queimar, vem mostrando ao mundo que filmes repletos de ação, fúria e músculos não são exclusividade de cineastas machões.
 Aqueles que, em termos cinematográficos, sempre associam o universo feminino a filmes românticos, dramáticos e "com mensagem", o chamado filme de mulherzinha, vai se assustar com toda a raiva, sangue e violência que explodem nas produções de Katryn Bigelow.
 Uma espécie de John Woo/ Peckimpah de saias, Bigelow começou a chamar a atenção de crítica e público com o terror ultra-cult  Quando Chega a Escuridão (Near Dark/EUA, 1987). Um dos mais realistas e perturbadores longas sobre vampiros já realizados. Ficando cabeça a cabeça com outros marcos sobre o assunto no cinema como Martin (EUA/1976) de George Romero, Sede de Sangue (Bakjwi/Thirst/ Coréia do Sul, 2009) de Chan-wook Park e Fome de Viver (The Hunger/EUA, 1983) de Tony Scott.
 Três anos após o sucesso de Near Dark a audaciosa cineasta se une ao feroz e polêmico Oliver Stone, que produz o novo petardo fílmico de Bigelow, e entrega outro filmaço: Jogo Perverso (Blue Steel/EUA, 1990). Um thriller policial feminista e brutal.
 Em 1991 a diretora conquista de vez os corações e mentes dos fãs do Cinema de Ação ao redor do Mundo com o arrebatador Caçadores de Emoções (Point Break/EUA, 1991). Produção policial sangrenta e estilizada mesclada com as mais alucinantes sequências de esportes radicais que se possa imaginar.
 Point Break marcou o início da relação profissional, e pessoal, de Katryn Bigelow com o todo poderoso James Cameron ( Titanic, Avatar).
 Cameron também iria produzir, e roteirizar, o próximo trabalho da cineasta: Estranhos Prazeres (Strange Days). Um cyberpunk sombrio e sinistro que antecipava as ideias de Matrix, mas com um teor bem mais adulto e efetivo que a obra dos Wachowski.
 Com o fracasso comercial de Estranhos Prazeres, algo inexplicável para uma produção tão empolgante, inteligente e tecnicamente impecável como Strange Days, Bigelow ficou no limbo por cinco anos retornando em 2000 com o drama hardcore O Peso Na Água (The Weight of Water/EUA, 2000), em que a cineasta transfere para os filmes dramáticos toda a força e ritmo pulsante dos longas de ação e aventura.
  Infelizmente, seguindo a sina de Strange Days, The Wight of Water também foi ignorado por crítica e público e logo foi esquecido nas prateleiras das vídeo locadoras.
 Dois anos depois a incansável diretora comanda a super produção K-19, The Widowmaker (EUA/2002). Uma aventura submarina a lá Caçada ao Outubro Vermelho ( The Hunt for Red October/EUA, 1990). Ambientado durante a guerra fria, K-19 trazia as marcas registradas de Bigelow: cenas de ação intensas e cruas e personagens verossímeis. O problema dessa vez foi que a estrela de Katryn Bigelow foi ofuscada pela presença do seu elenco famoso. Sendo que, até hoje, K-19 é muito mais lembrado como sendo "um filme" de Harrison Ford e Liam Neeson, protagonistas do longa, do que de Bigelow.
 Finalmente, em 2009, com um orçamento pequeno, portanto com muito mais liberdade criativa e menos pressão de produtores, Bigelow pode realizar outro clássico do mesmo nível de Point Break e Strange Days. Guerra ao Terror, juntamente com seu filme irmão A Hora Mais Escura, é uma primorosa obra-prima da violência, degradação e loucura que, finalmente, trouxe para as telas, sem nenhum tipo de complacência, a verdade e real dimensão sobre a intervenção norte americana no Oriente Médio. De quebra recolocou a carreira desta cineasta genial nos trilhos e, como eu citei anteriormente, deu um murro na cara do conhecido machismo hollywdiano arrancando da Academia o primeiro oscar de melhor diretora em quase oitenta anos de existência da premiação.
 Bem vinda de volta Katryn Bigelow!
 E viva as mulheres!                                                        




 
 






0

ON OTNIRIBAL

                                                                           

 



  O meu primeiro contato oficial com a obra de James Joyce se deu em minha adolescência no interior das páginas de Skreemer uma densa e estilosa HQ techno-noir da DC Comics. Roteirizada por Peter Milligan e ilustrada por Brett Ewins e Steve Dillon, Skreemer era uma história de gangsters crua e ultraviolenta a lá Scarface que fazia várias citações da obra de Joyce especialmente a O Despertar de Finnegan (Finnegan's Wake). Além de possuir uma diagramação intrincada e inovadora típica dos livros do escritor irlandês.
 Eu disse "oficial" porque, a exemplo de outros deuses-demônios da Literatura Universal como Shakespeare, Homero, Lovecraft, Hemingway, Arthur Conan Doyle, Érico Veríssimo, etc, para mim, e acredito que para a maioria das outras pessoas também, parece que eu sempre soube da existência de James Joyce e dos outros escritores citados acima.
 Acredito que esse estranho fenômeno deva acontecer devido ao fato da obra desses escritores estarem tão amalgamados e de estarem sendo a séculos tão influentes nos mais variados aspectos de nossa sociedade que, da mesma forma como ninguém precisa nos ensinar que devemos usar a boca para nos alimentarmos ou nos mostrar que o sol é quente e a água molhada, parece que já nascemos sabendo quem são Homero, Dante e cia. Parece que esses escritores sempre estiveram conosco mesmo na época em que não sabíamos exatamente quem eram eles.
 E isso acontece independente de você gostar, ou não, de ler. Da mesma forma como não se precisa ser um ávido consumidor de quadrinhos ou ser um beattlemaníaco para saber, antes mesmo de aprendermos a falar, quem é o Super-Homem ou quem são John, George, Ringo e Paul respectivamente.
 É algo instintivo, genético...Acredito que este seja o real motivo dos livros destes autores serem chamados de Literatura Universal.
 Ok. Confesso que estou meio nervoso em resenhar a obra que muitos teóricos da literatura consideram como sendo o romance definitivo de século XX.
 Entretanto, como o lema que eu mais venho utilizando durante toda a minha vida tem sido: "Que se foda"! e seguir em frente, vamos lá. Ah, só mais uma coisinha antes de começar: a pouco mais de um mês atrás eu li em Diário Mínimo (editora Record, 433 pág.), de Umberto Eco, uma fodástica coletânea de crônicas, um texto em que Eco aconselhava o leitor a, ao contrário do que muitos pensam e orientam, ler a intrincadíssima e exaustiva obra do escritor James Joyce sem qualquer tipo de pré-conhecimento ou conselhos de críticos literários, pois, devido ao caráter multi interpretativo da obra do escritor irlandês, o mais importante em se tratando dos livros Joyce seria, em primeiro lugar, tirarmos nossas próprias  conclusões. E assim, livre da interferência de qualquer espécie de influência externa, cada leitor poderá, talvez, ver, acrescentar e descobrir novos ângulos e pontos de vista que estariam, até então, ocultos nos livros do escritor irlandês.
 Bom, sendo assim QUE SE FODAM os acadêmicos, pois, a partir de agora, a análise de Ulysses (Penguin/Companhia das Letras, 1.106 pág.), de James Joyce que você vai ler será feita com o mínimo de base teórica possível. Em que prevalecerá, em primeiro lugar, a minha própria e exclusiva visão sobre a saga de Leopold Bloom.
 Afinal, por mais mundana e medíocre que alguns possam considerar esta resenha ela será, no fim das contas, igual aos personagens de Ulysses. Porque por detrás das toneladas de referências aos assuntos mais complexos e obscuros e das inovações narrativas radicais da obra a principal mensagem de Joyce era enaltecer os aspectos mais comuns do ser humano. Mostrando brilhantemente que mesmo as situações mais triviais do dia a dia podem serem portas para os mais aterradores, complicados e fascinantes mundos e universos.
 Ulysses é uma magnífica paródia da Odisseia, de Homero. Composto, muito provavelmente, no século VIII a. C. Odisseia é um dos maiores patrimônios da imaginação, da cultura e da arte humanas de todos os tempos. Praticamente sinônimo da palavra épico e do termo Alta Literatura, o poema de Homero vem, desde a época de sua criação, influenciando, praticamente, qualquer espécie de manifestação cultural que gire em torno dos temas do herói e do heroísmo ou que esteja ligada a palavra grandiosidade. Literatura, cinema, histórias em quadrinhos, música clássica, heavy metal, vídeo-games...Não importa a mídia...Qualquer coisa da cultura humana que exalte o espírito guerreiro, a nobreza de caráter e a aventura terá o dedo da Odisseia e de Homero. Em suma, como eu comentei alguns parágrafos acima, Odisseia pertence aquela categoria de obras literárias que estão a tanto tempo, e tão profundamente, entranhadas no imaginário de nossa sociedade que acabou se tornando parte daquilo que C.G. Jung denomina como inconsciente coletivo e que o mitólogo Joseph Campebell usa para explicar os mitos arquétipos em seu gigantesco tratado sobre mitologia As Máscaras de Deus.
 E são justamente esses arquétipos sagrados da Odisseia que James Joyce, simultaneamente, usa como base e metáfora, homenageia e destrói em Ulysses.
 Se em sua obra Homero usa o tema da viagem de volta para casa de um homem para exaltar tudo aquilo que o ser humano tem de mais nobre e, até mesmo de sobre-humano, como força, coragem, honra e astúcia exacerbadas, Joyce usa o mesmo tópico para explicitar aquilo que nós temos de mais baixo, vil, mesquinho, nojento e trivial.
 Se a Odisseia pode ser considerada a epopeia definitiva sobre a coragem, a aventura e o super-homem Ulysses é o seu exato oposto, seu reflexo distorcido, seu doppelgänger. Uma epopeia punk feita de niilismo, conduzida pela mais cruel desventura, fedendo a podre e protagonizada por um bando de pobres coitados totalmente perdidos no labirinto que é a vida.
 Entretanto, da mesma forma que o cinema de Martin Scorsese, Joyce narra o seu drama mundano com a mesma opulência, criatividade e sofisticação visual dos grandes épicos. Empurrando a literatura e as técnicas literárias aos seus limites mais extremos, sublimes e perfeitos. Ulysses não é um livro para ser digerido em apenas uma leitura, eu pretendo lê-lo novamente, e, muito provavelmente, terei que fazer outra resenha sobre ele depois disso, pois descobrirei centenas de outras ópticas, ideias e perspectivas que nem sequer imaginei existirem em minha primeira leitura, tampouco é uma obra tranquila, fácil e agradável que lemos para nos distrairmos na beira de alguma praia.
 A saga de Leopold Bloom, o "Odisseu" de Joyce, e de seus ordinários companheiros é narrada por meio de uma estética tão insana e, praticamente, indecifrável quanto genial, lídima e brilhante.
 Em busca da originalidade e da radicalidade literárias absolutas, James Joyce narrou a maior parte de sua magnum opus dentro do caos, da verborragia e da velocidade estonteante do pensamento humano. Em Ulysses o leitor é jogado, literalmente, dentro da intimidade do raciocínio dos personagens. E logo você descobrirá que de racional, no sentido clássico da palavra, a nossa mente tem muito pouco...
 Essa técnica ao mesmo tempo extraordinária e exasperante empregada por Joyce faz de seu livro uma obra enciclopédica em que em apenas uma página dezenas dos mais variados assuntos sejam esmiuçados enquanto o leitor sua os seus neurônios e testa a sua concentração para correr atrás da principal linha narrativa da trama e não se perder em meio ao emaranhado multi temático que explode em cada fragmento de Ulysses.
 Ao adaptar todo o universo da Grécia ancestral, mitológica e fantástica do século XI a. C. de a  Odisseia para a nua e crua realidade da Irlanda do início do século XX o furacão literário de James Joyce não nos apresenta, apenas, uma simples mudança espaço temporal, mas sim um painel completo em seus mínimos pormenores das infinitas e brutais diferenças que ocorrem entre situações semelhantes, entretanto separadas entre si por culturas distintas e por um abismo de aproximadamente 3.000 anos de idade. Não sei até que ponto as situações surreais e delirantes que Homero criou em sua obra serviram, se é que serviram, para o lendário autor tecer alegorias e críticas sociais da sociedade em que vivia. Mas quanto a Joyce, me pareceu que este quis provar que, muitas vezes, e sem nos darmos conta disso, a nossa realidade é bem mais dura, pior, perigosa, traiçoeira, sombria e infinitamente mais complicada do que os mais diabólicos mundos imaginários. Sentimos calafrios na espinha ao pensarmos em bruxas, ciclopes e cenários infernais repletos de mutações demoníacas e respiramos aliviados por vivermos em uma época em que os avanços científicos e tecnológicos nos livraram da Idade das Trevas onde que uma simples gripe poderia se transformar em uma pandemia assassina capaz de varrer um país inteiro. Entretanto, esquecemos que essa mesma doutrina techno/científica salvadora que, teoricamente, empurra a humanidade para um futuro cada vez mais racional e livre de vicissitudes também pode, em um piscar de olhos, nos arremessar no abismo.
  Um mundo cada vez mais globalizado, científico e informatizado não serve, apenas, para unir e distribuir entre nós aquilo que o ser humano tem de melhor, mas também para espalhar a nível planetário, e à velocidade da luz, a porção mais animalesca, insana e repugnante de nossa alma. Civilizações cientificamente mais avançadas conquistando, escravizando e destruindo populações e culturas inteiras, armas de destruição em massa....Bolsas de valores oscilando descontroladamente, países mergulhando no caos devido a gigantescas fraudes financeiras arquitetadas por meia dúzia de banqueiros, a economia mundial, e a civilização, quase que permanentemente, por um triz...As comunicações evoluíram de forma tão maravilhosa que basta um modem para nos deixar perpetuamente em contato com as mentes distorcidas pelos mais doentios distúrbios psicossexuais que se possa imaginar ao mesmo tempo em que, graças aos avanços nos camposa da biotecnologia, da engenharia genética e da informática, a filha adolescente de nosso vizinho pode estar criando em um laboratório improvisado em seu quarto uma nova, e letal, modalidade do vírus do sarampo.
 Bem-vindo ao mundo de verdade. Onde tudo é "racional" e científico e você não precisa se preocupar com bruxas, lobisomens ou deuses malignos, pois aqui existem coisas muito piores do que isso...
 Acho que esse é o cerne de Ulysses: fazer um cotejo entre o real e o imaginário. E nos mostrar que mesmo o ser humano mais medíocre de nosso mundo "lógico" e "coerente" tem que, em um único dia de sua vida e sem se afastar muito de seu lar, enfrentar monstros, perigos, catástrofes e demônios muito piores do que aqueles que o herói máximo da Odisseia encontrou em sua viagem de anos pelos rincões mais afastados e obscuros do mundo.
 Essa é a principal, e horripilante, mensagem que James Joyce quer passar para o leitor: as nossas vidas, a vida de qualquer um, é uma aventura aterradora onde, desde o momento de nosso nascimento, temos que viver com um machado afiado permanentemente sob nossas cabeças e com a morte sempre correndo em nossos calcanhares.
 Um dos notáveis exemplos em Ulysses entre este paralelo e confronto entre a realidade e o fantástico se dá no segmento em que Leopold Bloom visita um prostíbulo e que equivale a passagem da Odisseia em que a nau de Ulisses e seus companheiros aporta na ilha Eéia onde se tornam prisioneiros da sensual e diabólica bruxa Circe. Na epopeia de Homero o embate e perigos que os heróis devem enfrentar nas garras da feiticeira são meramente de ordem física, bem mais simples e, digamos, mais visíveis do que os que Bloom e seus companheiros de farra correm ao penetrarem em um simples bordel.
 Se na passagem de Circe em Odisseia toda a situação é apresentada de forma maniqueísta com o bem e o mal interpretados em termos absolutos e os papéis de heróis e vilões estão claramente definidos ----um grupo de corajosos aventureiros, vítimas de um destino cruel e de divindades vingativas, se tornam prisioneiros de uma celerada bruxa----o equivalente que Joyce nos mostra em sua obra é bem mais complicado e perigoso.
 Em Ulysses, e consequentemente no mundo real, os personagens não são pobres vítimas sujeitas aos caprichos de potestades divinas alheias a nossa carne e espírito. Leopold e Molly Bloom, Stephen Dedalus e cia carregam seus próprios deuses e demônios dentro de si e intrínsecos as sua personalidades. Não são os ventos soprados por Poseidon que arrastam Leopold para as entranhas de um puteiro, mas sim a própria atração que este sente, que todos nós sentimos, pelo pecado, pelo proibido, pelo perigo.
 Quem dera que os personagens de Ulysses que frequentam o bordel precisassem se preocupar apenas com uma bruxa má que pretende transformá-los em porcos. Aqui os riscos são muito mais terríveis do que simples magia negra, e o que é pior, muito mais camuflados e sutis.
 Aqueles que se atrevem a aportar nas Eéias de Joyce e da vida real podem ser, a qualquer momento, possuídos por espíritos malignos invisíveis aos olhos humanos como a sífilis, gonorreia, herpes genital, em uma época em que a descoberta da penicilina ainda estava, mais ou menos, uma década no futuro, e dezenas de outros demônios desta mesma Legião.
 Mas, como eu disse a pouco, as piores ameaças que os personagens de Joyce enfrentam não vem de fora, mas de dentro deles mesmos: o eterno medo que os frequentadores das alcovas de "Circe" tem de que a sociedade descubra os seus pecados e jogue os seus nomes na lama, o sentimento de culpa dilacerante, e que terão de carregar para o resto de suas vidas, por terem traído suas esposas...Os perigos da Eéia de Ulysses vem de todas as direções e são de todos os tipos que se possa imaginar: físico, moral, filosófico, espiritual...Aqui o castigo por não se ter resistido a "sedução da feiticeira" pode vir tanto em formato gigantesco, épico e gritante, como ser esmagado pelo punho implacável da sociedade moralista, quanto por meio de uma roupagem microscópica como ter seu corpo destruído pelos demônios venéreos.
 Essa obsessão/paralelo entre o macro e o micro em Ulysses explode na espetacular e inacreditável passagem da obra em que Joyce usa as mais simples e corriqueiras ações no dia a dia de uma pessoa para explicar todo o funcionamento de uma cidade, de um país, da natureza, dos planetas, da Via Láctea, de tudo...
 Por meio de um gigantesco fluxo de consciência o autor, por mais delirante e inverossímil que isso possa parecer,  nos prova por A + B que o simples passo que qualquer indivíduo dê ou o simples abrir de uma torneira está profunda e precisamente ligado a uma cadeia de eventos cósmicos que influenciará tanto no movimento das águas dos rios e oceanos da Terra quanto na formação de outros planetas, explosões de estrelas e além...
Assim, Joyce cria uma fascinante especie de Fisiologia do Universo que deixa o leitor de boca aberta e sem fôlego e que, visionariamente, antecipa a polêmica Teoria do Caos do matemático e meteorologista Edward Lorenz que através deste seu revolucionário conceito quis nos mostra que: O simples bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um tornado no Texas.
 Toda essa abordagem enlouquecedora de conhecimento desmesurável em Ulysses prova para o leitor o alcance infinito de sapiência absoluta a que pode chegar a literatura.
  E a Fisiologia do Universo na obra de James Joyce vem embutida dentro de uma estética literária igualmente universal em que, emaranhadas no interior do labirinto do pensamento humano, vão se sobrepondo umas sobre as outras, como uma boneca russa ou as camadas de uma cebola, as mais variadas técnicas narrativas: da antecipação do lisérgico estilo beatnik de William S. Burroughs, que derruba as barreiras entre o real e o fantástico, e da linguagem telegráfica que caracterizaria a obra de Ernest Hemingway e se tornaria marca registrada da literatura Hard Boiled, passando pela poesia em formato de prosa e chegando a abranger até mesmo estilos narrativos que não pertencem a literatura como nas passagens de Ulysses em que a estrutura do texto lembra um roteiro de peça de teatro ou de cinema.
 Da mesma forma como aboliu as regras e seguiu os seus próprios instintos na elaboração do atordoante amálgama de técnicas e estilos que é a narrativa de Ulysses, James Joyce cria novos "preceitos" gramaticais e sintáticos tão radicais para a construção de seu texto que, por vezes, parece que o escritor está fabricando uma nova língua.
 Joyce segue a risca a opinião de outro titã da literatura, Monteiro Lobato, sobre a normatividade da língua  no preâmbulo de seu clássico Urupês: "Não há lei humana que dirija uma língua, porque língua é um fenômeno natural, como a oferta e a procura, como o crescimento das crianças, como a senilidade, etc [...] Se uma lei institui a obrigatoriedade dos acentos essa lei vai fazer companhia às leis idiotas" [...]
 Assim, em Ulysses o autor manda o hífen para a puta que o pariu praticamente um século antes de nosso Novo Acordo Ortográfico...e muito mais: palavras escritas de trás para a frente, neologismos, aglutinação de vocábulos que transformam dezenas de termos de uma frase em uma única, e gigantesca, palavra. Joyce também controla até mesmo a velocidade com que quer que o seu leitor avance na narrativa de Ulysses, como no capítulo final que é composto de várias páginas com zero de qualquer tipo de pontuação ou vírgula. Isso faz com que, sem nem percebermos, vamos devorando as palavras uma após a outra até, literalmente, perdermos o fôlego.
 Nascido em Dublin, na Irlanda em 2 de fevereiro de 1882, James Joyce teve uma educação bem diversa da narrativa de sua obra mais famosa: politicamente correta e rígida. Entretanto logo Joyce chuta o balde e se revolta contra os padres jesuítas que foram os responsáveis pela sua educação básica. Vai para a universidade de Dublin onde estuda francês, inglês e italiano além de participar de grupos de literatura e de teatro.
 Mais tarde, em Paris, abandona a faculdade de medicina e começa a vagar pela Europa dando aulas de inglês. Em 1922 publica Ulysses que se torna um verdadeiro laboratório da Literatura Moderna e em 1939 Joyce lança sua obra derradeira: O Despertar de Finnegan, onde o escritor aditiva ainda mais as inovações apresentadas em Ulysses.
 Em 13 de janeiro de 1941, James Joyce, um verdadeiro cientista da literatura, morre em Zurique, na Suíça.
 Bom, esta foi a minha resenha sobre uma das maiores obras da história da Literatura Universal. Procurei, para o bem, ou para o mal, dar o máximo de mim nesta crítica e ser o mais sincero possível em relação a minha opinião sobre a obra de Joyce.
 Independente de você ter adorado este texto ou de tê-lo achado uma bosta completa recomendo que leia Ulysses e tire as suas próprias conclusões.
 Está longe de ser uma leitura fácil, mas lhe garanto que depois de lê-lo, independente de ter gostado ou não, você nunca mais irá encarar a literatura e a própria linguagem escrita como um todo, com os mesmos olhos...
 Pois, parafraseando o que uma professora de literatura me disse certa vez: "Ulysses não é uma obra apenas para se ler, mas também para se estudar e compreender a literatura".

 Agradecimentos à professora Márcia Lopes Duarte.