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O LADO PUNK DA MAGIA

 Em 1989/1990 ocorreu aqui no Brasil o chamado boom dos quadrinhos. Impulsionado pelo mastodôntico lançamento do longa-metragem do Batman (1989), de Tim Burton ----a primeira adaptação de um personagem dos comics a fazer sucesso nas telas desde Conan, O Bárbaro (Conan, The Barbarian/EUA 1982), de John Milius---e pelo congelamento dos preços dos produtos de consumo nacionais graças ao milagre, que logo, logo se revelaria uma maldição, do plano econômico do primeiro presidente do Brasil eleito pelo voto direto após décadas de ditadura militar, Fernando Collor de Mello, HQs com qualidade temática e visual mais sofisticadas começaram a pipocar por aqui.
 As obras dos maiores autores e artistas da nona arte mundial podiam ser encontrados em qualquer banca vagabunda de esquina...
 O depreciativo termo gibi foi substituído pelo muito mais intelectualizado e luxuoso graphic novel...
 Frank Miller era citado como um artista de vanguarda em várias publicações nacionais de respeito...
 Não era mais um tabu vergonhoso se gostar de coisas freak como revistas em quadrinhos e super-heróis...
 Era chegada à época de nerds como eu saírem do armário.
 Nessa época eu, e muitos outros fãs de quadrinhos de classe média-baixa, podia me dar ao luxo de colecionar múltiplos títulos de HQs. Portanto todos os meses eu comparecia liturgicamente às bancas e adquiria os quatro sagrados, pelo menos para mim, títulos: Batman, X-Men, O Monstro do Pântano, e o clássico-cult, Superaventuras Marvel. Isso sem contar, quando a grana sobrava, uma ou outra mini-série ou graphic novel.
 Não adianta mentir. Já foi comprovado. Por mais que a maioria dos pais teimem em afirmar para os outros, e para si mesmos, que amam em medidas iguais a todos os seus rebentos sempre vai ter um, por mais cruel que isso possa parecer, entre a prole que vai ser o favorito.
 E assim era comigo e minhas HQs.
 Por mais que eu vibrasse com os quebra-paus entre Matt Murdock e Frank Castle em Superaventuras Marvel, me identificasse com a personalidade sombria e atormentada de Bruce Wayne e intrigasse os meus neurônios com os roteiros chandlerianos que Chris Claremont bolava para os X-Men, meu filho predileto era, em termos de popularidade, o mais tímido e quieto de todos: O Monstro do Pântano.
 Devido as suas medidas convencionais, o execrável formatinho, e a impressão em papel  de baixa qualidade em uma época em que as revistas em quadrinhos começavam a se livrar de seu estigma de Literatura para Crianças e a grande maioria das HQs mais maduras voltadas para o público adulto eram publicadas em formato americano e papel de luxo, O Monstro do Pântano enganou muita gente, inclusive este que vos fala, ao ser confundida com apenas mais uma obra quadrinística convencional sobre super-heróis.
 Tudo isso se deve a uma total falta de conhecimento e domínio sobre o tema por parte das editoras e editores de HQ da época, pois O Monstro do Pântano era mais adulto, sinistro e complexo do que a grande maioria das graphic novels e mini-séries de luxo que saíram neste período.
 Mais do que isso, Swamp Thing foi um verdadeiro divisor de águas nos quadrinhos adultos e de horror.  Uma obra revolucionária cuja força da ruptura que provocou no mundo dos comics se faz sentir até hoje e que abriu as portas para a DC criar o controvertido selo Vertigo que abrigou, e ainda abriga, alguns dos mais lendários, geniais e subversivos roteiristas e desenhistas de HQ de todos os tempos.
 Se tivesse sido editada hoje, esta fase do Monstro do Pântano, que saiu por aqui no início da década de 1990, receberia tratamento de uma obra literária de alto nível: formato americano, capa brochura, papel cuchê, preço exorbitante e seria vendida apenas em comic shops e livrarias luxuosas como a Saraiva.
 Felizmente, a mais de trinta anos atrás Swamp Thing não foi respeitada pelos seus ignóbeis editores brasileiros caso contrário milhares de jovens pobres e desajustados como eu não poderiam ter adquirido uma obra que mudaria as nossas vidas para sempre.

 Passar os olhos, à época eu tinha dezesseis anos de idade, pelos rebuscados textos de O Monstro do Pântano foi um choque para mim: as descrições barrocas dos ambientes, personagens e situações misturados aos diálogos cortantes repletos de referências a política, religião, ciência, filosofia, ocultismo e cultura pop temperadas com palavrões ríspidos era algo que eu nunca havia lido antes em minha vida.
 Eu estava sendo apresentado a literatura para adultos.
 Eu estava sendo apresentado a literatura de verdade.
 O arco de histórias de O Monstro do Pântano que me deixou tão embasbacado era, e é, simplesmente, o mais cultuado de toda a trajetória desta HQ: o épico sobrenatural Gótico Americano.
 Com roteiros do Deus dos quadrinhos, Allan Moore, se você curte HQ já deve ter ouvido falar do cara, se ainda não ouviu, então meu amigo, você NÃO curte HQ, aos não iniciados na nona arte vou tentar lhes resumir a importância do Gigante de Northampton da forma mais sucinta possível: em termos de comparação digamos que Moore é tão revolucionário para os quadrinhos quanto o foram para a literatura em geral e o cinema James Joyce e Stanley Kubrick respectivamente.
 Em Gótico Americano, o roteirista inglês amalgamou da forma mais genial possível horror antigo com moderno, H.P. Lovecraft com Clive Barker e Arthur C.Clarke, o ocultismo mais animalesco com a ciência mais avançada.
 Mas o motivo desta minha resenha não é o personagem-título de Swamp Thing, uma melancólica mutação entre homem e planta criada, na década de 1970, por Len Wein e Berni Wrightson com ecos do clássico Frankenstein e estética calcada nos gibis da E.C. ,que anos mais tarde, Moore transformaria em um monstro contra-cultural e politizado, e sim um mero coadjuvante da coisa toda.
 Para guiar o Monstro do Pântano pelo labirinto macabro e lisérgico com profundas ramificações tanto na astronomia quanto na magia negra ancestral e na cultura pop que foi o arco de histórias que formam Gótico Americano, Allan Moore e seus desenhistas criaram John Constatine.
 Trajando um sobretudo, sempre com um cigarro no canto da boca e um sarcasmo, cinismo e ceticismo crônicos em relação a tudo e a todos que o cercam, Constantine de cara me lembrou os detetives e policiais amorais da literatura noir como Sam Spade, Phillip Marlowe e Loyd Hopkins. Durões que acreditam que a sociedade humana já foi para o brejo a muito tempo e que não alimentam nenhum tipo de esperança em relação a nada.
 A princípio, o sombrio Constantine, que parecia ser tão enigmático e diabólico quanto as tramas para as quais enviava o Monstro do Pântano, surgia apenas no início e no fim das histórias parecendo uma versão mais moderna e intelectualizada do Zelador da Cripta de HQs de horror como Tales From The Crypt.
 A medida que o Monstro do Pântano, e o leitor, vai montando as peças do intrincado quebra-cabeças macabro, que é a saga Gótico Americano, e começa a descobrir que tudo desembocará em uma assustadora conspiração de proporções cósmicas e apocalípticas ele também vai, paralelamente, descobrindo mais sobre si próprio e sobre John Constantine.
 Ficamos sabendo que, a despeito de seu conhecimento erudito em ciências ocultas e feitiçaria moderna, o guia do Monstro do Pântano é uma pessoa absolutamente comum e tão enigmático e diabólico quanto qualquer ser humano cheio de falhas, como todos nós, é capazes de ser.
 Inglês de nascimento, como seu criador Allan Moore, John é uma espécie de operário e rebelde underground no mundo da magia e, devido a isso, está permanentemente em contato com os ambientes e indivíduos mais baixos, vis e barra-pesada que lidam e vivem da feitiçaria.
 Ao final de Gótico Americano, Constantine se torna um personagem tão, ou mais, importante e querido pelos leitores que o próprio protagonista da história, o Monstro do Pântano. Mas qual o segredo do Mago Calhorda (uma das muitas alcunhas carinhosas pela qual John Constantine é conhecido, as outras são malandro, trapaceiro, ladrão, etc)? O que faz com que um personagem que possui o lado negro, vicioso e subversivo de sua personalidade tão acentuado, passe de mero coadjuvante e mestre de cerimônias ao status de protagonista?
 A resposta a essa questão eu já dei três parágrafos acima, entretanto vou me aprofundar um pouco mais nesta indagação.
 Constantine era, até então, um personagem de quadrinhos como eu nunca havia visto ou ouvido falar antes: nada de músculos, nada de boas intenções, nada de heroísmo e muito menos de super-heroísmo. Ele era um cara como eu: imperfeito, mal resolvido, debochado e que não levava nada muito a sério. Ele era um cara que você encontra as dezenas por aí: uma pessoa comum lutando por sua sobrevivência. Esse, para mim, é o grande fator cativante do personagem de Allan Moore: ser um João Ninguém, ser crível. Por mais que se seja fascinado pelo Superman, Wolverine e Homem-Aranha sabemos que eles são uma quase total impossibilidade. As chances de algum dia você encontrar alguém por aí voando ou pendurado em teias de aranha sintéticas são praticamente nulas. Já um cara desagradável, cínico, solitário, com um senso de humor macabro e do qual quase ninguém gosta nós conhecemos quase todos os dias em qualquer tipo de ambiente em que formos. John Constantine agradou tanto porque é um fidelíssimo reflexo da humanidade. Mesmo que a humanidade não o queira admitir.
 Com o término espetacular do arco Gótico Americano na revista Monstro do Pântano os leitores ficaram órfãos de uma das maiores e mais seminais sagas de horror, fantasia e ficção científica dos quadrinhos. Mas em compensação ganharam um novo personagem clássico não apenas das HQs, mas de toda a Literatura Fantástica.
 Em 1988, o Mago Calhorda finalmente ganha o seu título próprio nos quadrinhos: Hellbalzer. A partir de então somos apresentados ao mundo de onde veio Constantine e é aí que as coisas começam a ficar realmente fodonas...
 Esqueça Merlin, caldeirões ferventes, bruxas narigudas e wicca. A bruxaria com a qual Constantine lida e convive em seu dia a dia pertence ao universo de Livros de Sangue e Coração Satânico e não ao de Harry Potter e As Crônicas de Nárnia.
 Nada de Reinos Medievais Encantados e dimensões paralelas, o fantástico e o horror que conduzem as tramas de Hellblazer acontecem aqui e agora revelando, além de demônios, vampiros e outros monstros sobrenaturais, os monstros, refugos e demônios de nossa própria sociedade e de nós mesmos que se escondem na escuridão dos becos, na miséria dos guetos de Terceiro Mundo, na loucura das drogas e na violência da depravação.
 Ex-líder e vocalista de uma ácida banda de rock na linha de Sex Pistols, Constantine transita pelo mundo do sobrenatural com a atitude tipicamente niilista  herdada do Movimento Punk como se fosse um Johnny Rotten do ocultismo.
 Anti-herói por excelência, muitas vezes o sangue frio e a crueldade demostradas pelo protagonista de Hellblazer o tornam tão perigoso e assustador quanto os seus próprios e monstruosos inimigos. Fazendo com que o leitor vez por outra se pergunte de que lado Constantine realmente está, se do Céu ou do Inferno?
 Os fãs mais atentos e de mente aberta perceberão que no mundo de Hellblazer, assim como no mundo real, o bem e o mal são duas faces da mesma moeda e de que, por vezes, o demônio mais carniceiro pode ser capaz de praticar atos de bondade e redenção enquanto que alguns anjos são tão ferozes quanto o mais sanguinário dos psicopatas.
 Em seus quase trinta anos de existência, Constantine já enfrentou toneladas de aberrações sobrenaturais e naturais inimagináveis e repugmantes enquanto se equilibra perigosamente sobre uma corda bamba entre sagrado e o profano em tramas, quase sempre, assustadoras e sufocantes e que não perdem em nada para as obras de gênios da fantasia negra como Stephen King e Clive Barker.
 Esse altíssimo nível de qualidade das histórias de Hellblazer se deve ao fato de seus roteiristas serem escolhidos a dedo e de sempre estarem a altura da personalidade insurreta e perversa de John Constantine.
 De Allan Moore a Neill Gaiman, de Grant Morrison a Garth Ennis, de Warren Ellis (que escreveu uma história tão polêmica para Hellblazer que por anos a DC a deixou engavetada) ao romancista China Miéville.
 Os escritores das aventuras de Constatine foram recrutados dos guetos mais sinistros e inovadores do horror, da ficção científica e do policial e todos foram contribuindo no decorrer dos anos para formar a persona controversa do Mago Calhorda.
 Embora os vários "pais" de Constantine o tenham levado aos mais diferentes cenários, fazendo-o enfrentar os mais diverso inimigos e o tornando, ora mais vilanesco, ora mais bondoso, nunca esqueceram do principal: sempre mostrar que, no fundo, John Constatine é apenas um ser humano comum...como todos nós.