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ON OTNIRIBAL

                                                                           

 



  O meu primeiro contato oficial com a obra de James Joyce se deu em minha adolescência no interior das páginas de Skreemer uma densa e estilosa HQ techno-noir da DC Comics. Roteirizada por Peter Milligan e ilustrada por Brett Ewins e Steve Dillon, Skreemer era uma história de gangsters crua e ultraviolenta a lá Scarface que fazia várias citações da obra de Joyce especialmente a O Despertar de Finnegan (Finnegan's Wake). Além de possuir uma diagramação intrincada e inovadora típica dos livros do escritor irlandês.
 Eu disse "oficial" porque, a exemplo de outros deuses-demônios da Literatura Universal como Shakespeare, Homero, Lovecraft, Hemingway, Arthur Conan Doyle, Érico Veríssimo, etc, para mim, e acredito que para a maioria das outras pessoas também, parece que eu sempre soube da existência de James Joyce e dos outros escritores citados acima.
 Acredito que esse estranho fenômeno deva acontecer devido ao fato da obra desses escritores estarem tão amalgamados e de estarem sendo a séculos tão influentes nos mais variados aspectos de nossa sociedade que, da mesma forma como ninguém precisa nos ensinar que devemos usar a boca para nos alimentarmos ou nos mostrar que o sol é quente e a água molhada, parece que já nascemos sabendo quem são Homero, Dante e cia. Parece que esses escritores sempre estiveram conosco mesmo na época em que não sabíamos exatamente quem eram eles.
 E isso acontece independente de você gostar, ou não, de ler. Da mesma forma como não se precisa ser um ávido consumidor de quadrinhos ou ser um beattlemaníaco para saber, antes mesmo de aprendermos a falar, quem é o Super-Homem ou quem são John, George, Ringo e Paul respectivamente.
 É algo instintivo, genético...Acredito que este seja o real motivo dos livros destes autores serem chamados de Literatura Universal.
 Ok. Confesso que estou meio nervoso em resenhar a obra que muitos teóricos da literatura consideram como sendo o romance definitivo de século XX.
 Entretanto, como o lema que eu mais venho utilizando durante toda a minha vida tem sido: "Que se foda"! e seguir em frente, vamos lá. Ah, só mais uma coisinha antes de começar: a pouco mais de um mês atrás eu li em Diário Mínimo (editora Record, 433 pág.), de Umberto Eco, uma fodástica coletânea de crônicas, um texto em que Eco aconselhava o leitor a, ao contrário do que muitos pensam e orientam, ler a intrincadíssima e exaustiva obra do escritor James Joyce sem qualquer tipo de pré-conhecimento ou conselhos de críticos literários, pois, devido ao caráter multi interpretativo da obra do escritor irlandês, o mais importante em se tratando dos livros Joyce seria, em primeiro lugar, tirarmos nossas próprias  conclusões. E assim, livre da interferência de qualquer espécie de influência externa, cada leitor poderá, talvez, ver, acrescentar e descobrir novos ângulos e pontos de vista que estariam, até então, ocultos nos livros do escritor irlandês.
 Bom, sendo assim QUE SE FODAM os acadêmicos, pois, a partir de agora, a análise de Ulysses (Penguin/Companhia das Letras, 1.106 pág.), de James Joyce que você vai ler será feita com o mínimo de base teórica possível. Em que prevalecerá, em primeiro lugar, a minha própria e exclusiva visão sobre a saga de Leopold Bloom.
 Afinal, por mais mundana e medíocre que alguns possam considerar esta resenha ela será, no fim das contas, igual aos personagens de Ulysses. Porque por detrás das toneladas de referências aos assuntos mais complexos e obscuros e das inovações narrativas radicais da obra a principal mensagem de Joyce era enaltecer os aspectos mais comuns do ser humano. Mostrando brilhantemente que mesmo as situações mais triviais do dia a dia podem serem portas para os mais aterradores, complicados e fascinantes mundos e universos.
 Ulysses é uma magnífica paródia da Odisseia, de Homero. Composto, muito provavelmente, no século VIII a. C. Odisseia é um dos maiores patrimônios da imaginação, da cultura e da arte humanas de todos os tempos. Praticamente sinônimo da palavra épico e do termo Alta Literatura, o poema de Homero vem, desde a época de sua criação, influenciando, praticamente, qualquer espécie de manifestação cultural que gire em torno dos temas do herói e do heroísmo ou que esteja ligada a palavra grandiosidade. Literatura, cinema, histórias em quadrinhos, música clássica, heavy metal, vídeo-games...Não importa a mídia...Qualquer coisa da cultura humana que exalte o espírito guerreiro, a nobreza de caráter e a aventura terá o dedo da Odisseia e de Homero. Em suma, como eu comentei alguns parágrafos acima, Odisseia pertence aquela categoria de obras literárias que estão a tanto tempo, e tão profundamente, entranhadas no imaginário de nossa sociedade que acabou se tornando parte daquilo que C.G. Jung denomina como inconsciente coletivo e que o mitólogo Joseph Campebell usa para explicar os mitos arquétipos em seu gigantesco tratado sobre mitologia As Máscaras de Deus.
 E são justamente esses arquétipos sagrados da Odisseia que James Joyce, simultaneamente, usa como base e metáfora, homenageia e destrói em Ulysses.
 Se em sua obra Homero usa o tema da viagem de volta para casa de um homem para exaltar tudo aquilo que o ser humano tem de mais nobre e, até mesmo de sobre-humano, como força, coragem, honra e astúcia exacerbadas, Joyce usa o mesmo tópico para explicitar aquilo que nós temos de mais baixo, vil, mesquinho, nojento e trivial.
 Se a Odisseia pode ser considerada a epopeia definitiva sobre a coragem, a aventura e o super-homem Ulysses é o seu exato oposto, seu reflexo distorcido, seu doppelgänger. Uma epopeia punk feita de niilismo, conduzida pela mais cruel desventura, fedendo a podre e protagonizada por um bando de pobres coitados totalmente perdidos no labirinto que é a vida.
 Entretanto, da mesma forma que o cinema de Martin Scorsese, Joyce narra o seu drama mundano com a mesma opulência, criatividade e sofisticação visual dos grandes épicos. Empurrando a literatura e as técnicas literárias aos seus limites mais extremos, sublimes e perfeitos. Ulysses não é um livro para ser digerido em apenas uma leitura, eu pretendo lê-lo novamente, e, muito provavelmente, terei que fazer outra resenha sobre ele depois disso, pois descobrirei centenas de outras ópticas, ideias e perspectivas que nem sequer imaginei existirem em minha primeira leitura, tampouco é uma obra tranquila, fácil e agradável que lemos para nos distrairmos na beira de alguma praia.
 A saga de Leopold Bloom, o "Odisseu" de Joyce, e de seus ordinários companheiros é narrada por meio de uma estética tão insana e, praticamente, indecifrável quanto genial, lídima e brilhante.
 Em busca da originalidade e da radicalidade literárias absolutas, James Joyce narrou a maior parte de sua magnum opus dentro do caos, da verborragia e da velocidade estonteante do pensamento humano. Em Ulysses o leitor é jogado, literalmente, dentro da intimidade do raciocínio dos personagens. E logo você descobrirá que de racional, no sentido clássico da palavra, a nossa mente tem muito pouco...
 Essa técnica ao mesmo tempo extraordinária e exasperante empregada por Joyce faz de seu livro uma obra enciclopédica em que em apenas uma página dezenas dos mais variados assuntos sejam esmiuçados enquanto o leitor sua os seus neurônios e testa a sua concentração para correr atrás da principal linha narrativa da trama e não se perder em meio ao emaranhado multi temático que explode em cada fragmento de Ulysses.
 Ao adaptar todo o universo da Grécia ancestral, mitológica e fantástica do século XI a. C. de a  Odisseia para a nua e crua realidade da Irlanda do início do século XX o furacão literário de James Joyce não nos apresenta, apenas, uma simples mudança espaço temporal, mas sim um painel completo em seus mínimos pormenores das infinitas e brutais diferenças que ocorrem entre situações semelhantes, entretanto separadas entre si por culturas distintas e por um abismo de aproximadamente 3.000 anos de idade. Não sei até que ponto as situações surreais e delirantes que Homero criou em sua obra serviram, se é que serviram, para o lendário autor tecer alegorias e críticas sociais da sociedade em que vivia. Mas quanto a Joyce, me pareceu que este quis provar que, muitas vezes, e sem nos darmos conta disso, a nossa realidade é bem mais dura, pior, perigosa, traiçoeira, sombria e infinitamente mais complicada do que os mais diabólicos mundos imaginários. Sentimos calafrios na espinha ao pensarmos em bruxas, ciclopes e cenários infernais repletos de mutações demoníacas e respiramos aliviados por vivermos em uma época em que os avanços científicos e tecnológicos nos livraram da Idade das Trevas onde que uma simples gripe poderia se transformar em uma pandemia assassina capaz de varrer um país inteiro. Entretanto, esquecemos que essa mesma doutrina techno/científica salvadora que, teoricamente, empurra a humanidade para um futuro cada vez mais racional e livre de vicissitudes também pode, em um piscar de olhos, nos arremessar no abismo.
  Um mundo cada vez mais globalizado, científico e informatizado não serve, apenas, para unir e distribuir entre nós aquilo que o ser humano tem de melhor, mas também para espalhar a nível planetário, e à velocidade da luz, a porção mais animalesca, insana e repugnante de nossa alma. Civilizações cientificamente mais avançadas conquistando, escravizando e destruindo populações e culturas inteiras, armas de destruição em massa....Bolsas de valores oscilando descontroladamente, países mergulhando no caos devido a gigantescas fraudes financeiras arquitetadas por meia dúzia de banqueiros, a economia mundial, e a civilização, quase que permanentemente, por um triz...As comunicações evoluíram de forma tão maravilhosa que basta um modem para nos deixar perpetuamente em contato com as mentes distorcidas pelos mais doentios distúrbios psicossexuais que se possa imaginar ao mesmo tempo em que, graças aos avanços nos camposa da biotecnologia, da engenharia genética e da informática, a filha adolescente de nosso vizinho pode estar criando em um laboratório improvisado em seu quarto uma nova, e letal, modalidade do vírus do sarampo.
 Bem-vindo ao mundo de verdade. Onde tudo é "racional" e científico e você não precisa se preocupar com bruxas, lobisomens ou deuses malignos, pois aqui existem coisas muito piores do que isso...
 Acho que esse é o cerne de Ulysses: fazer um cotejo entre o real e o imaginário. E nos mostrar que mesmo o ser humano mais medíocre de nosso mundo "lógico" e "coerente" tem que, em um único dia de sua vida e sem se afastar muito de seu lar, enfrentar monstros, perigos, catástrofes e demônios muito piores do que aqueles que o herói máximo da Odisseia encontrou em sua viagem de anos pelos rincões mais afastados e obscuros do mundo.
 Essa é a principal, e horripilante, mensagem que James Joyce quer passar para o leitor: as nossas vidas, a vida de qualquer um, é uma aventura aterradora onde, desde o momento de nosso nascimento, temos que viver com um machado afiado permanentemente sob nossas cabeças e com a morte sempre correndo em nossos calcanhares.
 Um dos notáveis exemplos em Ulysses entre este paralelo e confronto entre a realidade e o fantástico se dá no segmento em que Leopold Bloom visita um prostíbulo e que equivale a passagem da Odisseia em que a nau de Ulisses e seus companheiros aporta na ilha Eéia onde se tornam prisioneiros da sensual e diabólica bruxa Circe. Na epopeia de Homero o embate e perigos que os heróis devem enfrentar nas garras da feiticeira são meramente de ordem física, bem mais simples e, digamos, mais visíveis do que os que Bloom e seus companheiros de farra correm ao penetrarem em um simples bordel.
 Se na passagem de Circe em Odisseia toda a situação é apresentada de forma maniqueísta com o bem e o mal interpretados em termos absolutos e os papéis de heróis e vilões estão claramente definidos ----um grupo de corajosos aventureiros, vítimas de um destino cruel e de divindades vingativas, se tornam prisioneiros de uma celerada bruxa----o equivalente que Joyce nos mostra em sua obra é bem mais complicado e perigoso.
 Em Ulysses, e consequentemente no mundo real, os personagens não são pobres vítimas sujeitas aos caprichos de potestades divinas alheias a nossa carne e espírito. Leopold e Molly Bloom, Stephen Dedalus e cia carregam seus próprios deuses e demônios dentro de si e intrínsecos as sua personalidades. Não são os ventos soprados por Poseidon que arrastam Leopold para as entranhas de um puteiro, mas sim a própria atração que este sente, que todos nós sentimos, pelo pecado, pelo proibido, pelo perigo.
 Quem dera que os personagens de Ulysses que frequentam o bordel precisassem se preocupar apenas com uma bruxa má que pretende transformá-los em porcos. Aqui os riscos são muito mais terríveis do que simples magia negra, e o que é pior, muito mais camuflados e sutis.
 Aqueles que se atrevem a aportar nas Eéias de Joyce e da vida real podem ser, a qualquer momento, possuídos por espíritos malignos invisíveis aos olhos humanos como a sífilis, gonorreia, herpes genital, em uma época em que a descoberta da penicilina ainda estava, mais ou menos, uma década no futuro, e dezenas de outros demônios desta mesma Legião.
 Mas, como eu disse a pouco, as piores ameaças que os personagens de Joyce enfrentam não vem de fora, mas de dentro deles mesmos: o eterno medo que os frequentadores das alcovas de "Circe" tem de que a sociedade descubra os seus pecados e jogue os seus nomes na lama, o sentimento de culpa dilacerante, e que terão de carregar para o resto de suas vidas, por terem traído suas esposas...Os perigos da Eéia de Ulysses vem de todas as direções e são de todos os tipos que se possa imaginar: físico, moral, filosófico, espiritual...Aqui o castigo por não se ter resistido a "sedução da feiticeira" pode vir tanto em formato gigantesco, épico e gritante, como ser esmagado pelo punho implacável da sociedade moralista, quanto por meio de uma roupagem microscópica como ter seu corpo destruído pelos demônios venéreos.
 Essa obsessão/paralelo entre o macro e o micro em Ulysses explode na espetacular e inacreditável passagem da obra em que Joyce usa as mais simples e corriqueiras ações no dia a dia de uma pessoa para explicar todo o funcionamento de uma cidade, de um país, da natureza, dos planetas, da Via Láctea, de tudo...
 Por meio de um gigantesco fluxo de consciência o autor, por mais delirante e inverossímil que isso possa parecer,  nos prova por A + B que o simples passo que qualquer indivíduo dê ou o simples abrir de uma torneira está profunda e precisamente ligado a uma cadeia de eventos cósmicos que influenciará tanto no movimento das águas dos rios e oceanos da Terra quanto na formação de outros planetas, explosões de estrelas e além...
Assim, Joyce cria uma fascinante especie de Fisiologia do Universo que deixa o leitor de boca aberta e sem fôlego e que, visionariamente, antecipa a polêmica Teoria do Caos do matemático e meteorologista Edward Lorenz que através deste seu revolucionário conceito quis nos mostra que: O simples bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um tornado no Texas.
 Toda essa abordagem enlouquecedora de conhecimento desmesurável em Ulysses prova para o leitor o alcance infinito de sapiência absoluta a que pode chegar a literatura.
  E a Fisiologia do Universo na obra de James Joyce vem embutida dentro de uma estética literária igualmente universal em que, emaranhadas no interior do labirinto do pensamento humano, vão se sobrepondo umas sobre as outras, como uma boneca russa ou as camadas de uma cebola, as mais variadas técnicas narrativas: da antecipação do lisérgico estilo beatnik de William S. Burroughs, que derruba as barreiras entre o real e o fantástico, e da linguagem telegráfica que caracterizaria a obra de Ernest Hemingway e se tornaria marca registrada da literatura Hard Boiled, passando pela poesia em formato de prosa e chegando a abranger até mesmo estilos narrativos que não pertencem a literatura como nas passagens de Ulysses em que a estrutura do texto lembra um roteiro de peça de teatro ou de cinema.
 Da mesma forma como aboliu as regras e seguiu os seus próprios instintos na elaboração do atordoante amálgama de técnicas e estilos que é a narrativa de Ulysses, James Joyce cria novos "preceitos" gramaticais e sintáticos tão radicais para a construção de seu texto que, por vezes, parece que o escritor está fabricando uma nova língua.
 Joyce segue a risca a opinião de outro titã da literatura, Monteiro Lobato, sobre a normatividade da língua  no preâmbulo de seu clássico Urupês: "Não há lei humana que dirija uma língua, porque língua é um fenômeno natural, como a oferta e a procura, como o crescimento das crianças, como a senilidade, etc [...] Se uma lei institui a obrigatoriedade dos acentos essa lei vai fazer companhia às leis idiotas" [...]
 Assim, em Ulysses o autor manda o hífen para a puta que o pariu praticamente um século antes de nosso Novo Acordo Ortográfico...e muito mais: palavras escritas de trás para a frente, neologismos, aglutinação de vocábulos que transformam dezenas de termos de uma frase em uma única, e gigantesca, palavra. Joyce também controla até mesmo a velocidade com que quer que o seu leitor avance na narrativa de Ulysses, como no capítulo final que é composto de várias páginas com zero de qualquer tipo de pontuação ou vírgula. Isso faz com que, sem nem percebermos, vamos devorando as palavras uma após a outra até, literalmente, perdermos o fôlego.
 Nascido em Dublin, na Irlanda em 2 de fevereiro de 1882, James Joyce teve uma educação bem diversa da narrativa de sua obra mais famosa: politicamente correta e rígida. Entretanto logo Joyce chuta o balde e se revolta contra os padres jesuítas que foram os responsáveis pela sua educação básica. Vai para a universidade de Dublin onde estuda francês, inglês e italiano além de participar de grupos de literatura e de teatro.
 Mais tarde, em Paris, abandona a faculdade de medicina e começa a vagar pela Europa dando aulas de inglês. Em 1922 publica Ulysses que se torna um verdadeiro laboratório da Literatura Moderna e em 1939 Joyce lança sua obra derradeira: O Despertar de Finnegan, onde o escritor aditiva ainda mais as inovações apresentadas em Ulysses.
 Em 13 de janeiro de 1941, James Joyce, um verdadeiro cientista da literatura, morre em Zurique, na Suíça.
 Bom, esta foi a minha resenha sobre uma das maiores obras da história da Literatura Universal. Procurei, para o bem, ou para o mal, dar o máximo de mim nesta crítica e ser o mais sincero possível em relação a minha opinião sobre a obra de Joyce.
 Independente de você ter adorado este texto ou de tê-lo achado uma bosta completa recomendo que leia Ulysses e tire as suas próprias conclusões.
 Está longe de ser uma leitura fácil, mas lhe garanto que depois de lê-lo, independente de ter gostado ou não, você nunca mais irá encarar a literatura e a própria linguagem escrita como um todo, com os mesmos olhos...
 Pois, parafraseando o que uma professora de literatura me disse certa vez: "Ulysses não é uma obra apenas para se ler, mas também para se estudar e compreender a literatura".

 Agradecimentos à professora Márcia Lopes Duarte.

                                                                                         
                                                                   
                                                                                                                                                     


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OS MUNDOS DE MARIO BAVA

 Para a maioria dos cinéfilos, até mesmo para alguns "fãs" de filmes de horror, o cinema fantástico italiano se resume a produções indigestas, toscas, ultra apelativas e visualmente paupérrimas como longas sobre canibalismo, zumbis, nudez e pornografia. Tudo amparado por efeitos especiais de fundo de quintal.
 Em suma, cinema classe Z.
 Porém, aqueles que gostam, entendem e pesquisam a fundo os filmes de terror sabem perfeitamente que as palavras "indigesto", "tosco" e "apelativo" não são exatamente sinônimo de baixa qualidade em produções do gênero, muito pelo contrário. Além disso qualquer cinéfilo adulto e maduro já sabe a séculos que orçamentos milionários e efeitos visuais opulentos nunca foram garantia de qualidade cinematográfica seja em qual gênero que for.
 Entretanto, para calar a boca de cinéfilos caretas, metidos a intelectuais e covardes e para aquela nova modalidade de entusiastas de filmes de "terror" que vem surgindo nos últimos anos, que eu denominei de Fãs do Bem de Filmes de Terror ou Fãs de Filmes de Terror Politicamente Corretos, resolvi fazer uma resenha de uma verdadeira obra-prima do Cinema Fantástico Italiano que não perde em nada para as melhores obras de Alfred Hitchcock, Ridley Scott e Stanley Kubrick que os críticos de cinema sérios e que se acham superiores a nós, meros mortais, gostam tanto de incensar.
 Como geralmente, e infelizmente, acontece com as obras cinematográficas verdadeiramente boas e relevantes, La Frusta e Il Corpo, uma co-produção entre Itália e França lançada em 1963, é um filme obscuro e, excetuando-se os pesquisadores e connoisseurs de Cinema Fantástico, praticamente desconhecido do grande público.
 Dirigido por um dos mais versáteis e talentosos cineastas italianos, Mário Bava, que aqui assina a direção com o pseudônimo John M. Old, La Frusta e Il Corpo é uma filme de horror com um dos visuais mais espetaculares e impressionantes da história. O requinte estético desta obra de Bava a coloca no mesmo nível  de outros marcos do apuro técnico no Cinema de Horror como O Poço e o Pêndulo ( The Pit and The Pendulum/1961), de Roger Corman, Alien, O Oitavo Passageiro (Alien, 1979), de Ridley Scott, O Iluminado ( The Shining/1980), de Stanley Kubrick, Poltergeist, O Fenômeno (Poltergeist/1982), de Tobe Hopper e O Corvo (The Crow/1994), de Alex Proyas.
 No século XIX, em um opressivo castelo à beira mar, constantemente castigado pelas ondas do oceano sombrio e fustigado pelos ventos gélidos oriundos das imensidões do pélago, uma aristocrática família tenta a todo custo manter as aparências e evitar que a decadência moral de alguns de seus membros engolfem a todos em uma espiral de sangue, sexo e perversão.
 Neste cenário hamletiano temperado com toques de parafilia vivem o casal sadomasoquista Nevenka e Kurt Menliff (Daliah Lavi e Christopher Lee, respectivamente), os parentes destes, Count Menliff (Dean Ardow) e Christian Menliff (Tony Kendal), a bela Katia (Islio Oberon), o empregado da família chamado Losat ( Allan Collins) e um sacerdote conhecido, apenas, como Pastor.
 A partir do momento em que Kurt é assassinado em circunstâncias misteriosas, La Frusta e Il Corpo se transforma em uma belíssima homenagem aos clássicos textos macabros de Edgar Allan Poe e Henry James. Com, a exemplo das histórias de Poe, uma mistura angustiante de clima sobrenatural com horror psicológico que envolve o espectador em uma atmosfera gótica densa, pesada e sufocante.
 Embora as interpretações sejam precisas, com destaque paras as atuações de Daliah Lavi e, é óbvio, Christopher Lee, e os personagens nada maniqueístas, a grande estrela do filme é o seu visual e a primorosa técnica cinematográfica utilizada para compô-lo.
 Da mesma forma que Stanley Kubrick fez em 2001, Uma Odisseia No Espaço, Mario Bava não utiliza o virtuosismo das imagens de La Frusta e Il Corpo apenas como um acessório estético usado meramente para embelezar o seu filme, mas sim como uma forma de ajudar a contar a história. Aqui a fotografia trabalha lado a lado com o roteiro e as interpretações para fazer o espectador mergulhar em um pesadelo e partilhar das mesmas, e terríveis, sensações experimentadas pelos personagens do longa.
 E que fotografia!
 Cada fotograma deste clássico de Bava é uma guerra constante entre Cores, sombras e luz. Os ambientes tétricos do castelo da família Menliff são tão espantosos quanto os cômodos do hotel Overlook, de O Iluminado, o castelo de Vlad Draculea, de Drácula, de Francis Ford Coppola ou a fantasmagórica espaçonave Nostromo, de Alien.
 A exemplo desses outros três clássicos da estética gótica cinematográfica, quase todos os ambientes mostrados em La Frusta e Il Corpo estão sempre, em parte, mergulhados na mais absoluta e espessa escuridão. Essa atmosfera radicalmente sombria transmite ao filme uma sensação de perigo, suspense e tensão crônicos como se a qualquer instante algum monstro tentacular dos Mitos de Cthulhu vá saltar das sombras e arrastar os personagens para um buraco negro de horror e loucura.
 Um exemplo magistral deste medo do desconhecido que devassa o filme do início ao fim são as apavorantes sequências em que uma fantasmagórica mão emerge das profundezas das trevas para agarrar os personagem. Em momento algum do filme é explicitado de onde vem esta mão, se ela pertence a alguma pessoa de carne e osso, a um fantasma de outro mundo, ou se a algo ainda pior.
 A forma como Bava compôs essas cenas, com a mão pálida aflorando de um fundo negro e se aproximando vagarosamente da lente da câmera, colocam o espectador na pele dos aterrorizados personagens e são de um completo e magistral suspense do nível de Hitchcock, Brian De Palma, e de outro esteta dos filmes de terror e thrillers sangrentos italianos, Dario Argento. Para fechar com chave de ouro, o filme encerra com um perturbador final ambíguo tipicamente Kubrickiano. Nos deixando com a eterna dúvida se tudo o que acabamos de presenciar são, de fato, fenômenos paranormais ou, somente, fruto de uma mente enlouquecida.
 Graças a esse completo domínio de Mario Bava sobre a linguagem cinematográfica é possível ao espectador experimentar uma verdadeira imersão no universo gótico de La Frusta e Il Corpo. Com suas sombras quase palpáveis que parecem estarem vivas e respirando podendo, em um piscar de olhos, saltarem da tela e nos envolverem em um abraço gélido. É cinema total!
 Gosto de ficar especulando os visuais alucinantes que um cineasta tão talentoso como Bava criaria, caso estivesse vivo, com uma tecnologia como o 3-D digital. Certamente os nossos jovens e moderninhos diretores teriam muito o que aprender com esse velho mestre.
 Ao lado de Lucio Fulcie e Dario Argento, Mario Bava, nascido na cidade de Reno em 1914, faz parte do grupo de elite do Cinema Fantástico Italiano. E que, juntamente com esses outros dois gênios, foi o responsável por alguns dos cânones que regem as produções de horror, ficção científica e suspense, não apenas na Itália, mas em todo o Mundo e até os dias de hoje.
 Entre os vários clássicos revolucionários da carreira de Bava estão o episódico As Três Máscaras do Terror ( I tre volti della paura/1963), cujo título em inglês, Black Sabbath, inspirou o nome da primeira banda de heavy metal da história, Seis Mulheres Para o Assassino ( Sei Donne Per l' assassino/1964), considerado o marco-zero do giallo. Sempre radical e visionário Mario Bava seguiu desbravando os mares cinematográficos com a fusão horror/sci-fi Planeta dos Vampiros (Terrore nello spazio/1965), produção que foi uma das principais fontes de referência para os criadores de Alien, o Oitavo Passageiro e que contava com a atriz carioca Norma Bengell em seu elenco, Banho de Sangue ( Reazione a catena/1971), um dos primeiros slashers do cinema e que fez a ponte entre este e o giallo e Rabid Dogs um filmaço policial  muito à frente de seu tempo que antecipou em quase vinte anos o estilo tarantinesco de se filmar.
 Infelizmente, Bava faleceu em 1980 quando contava com a idade de 65 anos e ainda tinha muito gás para queimar.
 Entre o legado deste brilhante homem do cinema estão o seu filho Lamberto Bava, o qual eu tive o prazer de assistir palestrando na edição de 2011 do Fantaspoa e que dirigiu, entre outros, o cult grand guignol Demons (1985), e uma irretocável filmografia que influenciou não apenas cineastas, mas também artistas dos mais variados ramos da cultura pop.