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O Futuro é Foda!

 Vamos ser sinceros, desde que James Cameron partiu para um cinema mais família, Cronenberg se bandeou para outros gêneros e Paul Verhoeven meio que sumiu do mapa, goste-se ou não, a única esperança para os cinéfilos que curtem uma ficção-científica mais adulta e hardcore se chama Neill Blomkamp.
 Blomkamp possuía mesmo todos os requisitos necessários para se tornar um realizador de filmes que esbugalhassem nas telas o lado mais distópico, negro e fodido da ficção-científica: nascido na África do Sul em 1979, ele sempre foi um aficionado por tecnologia de ponta e cultura geek, mas que viveu em meio a tirania, truculência e miséria proporcionadas pelo regime do Apartheid. Ou seja, Neill Blomkamp cresceu em meio a dicotomia tecnologia alta/vida baixa que é o eterno cerne de qualquer sci-fi desviante, marginal e de esquerda que já existiu.
 Como quase todo o futuro diretor de Cinema Fantástico, Blomkamp iniciou a sua carreira como técnico de EFX produzindo os efeitos especiais de tele-séries cults de ficção científica como Smallville e Stargate SG-1, além de dirigir comerciais de marcas famosas recheados de CGI de última geração.
  Em 2006, ele dirigiu um sinistro curta metragem independente sobre alienígenas intitulado Alive In Joburg que chamou a atenção de um dos mais poderosos e premiados diretores de cinema high-tech da atualidade, Peter Jackson.
  Assim como Neill Blomkamp, Jackson também ficou famoso por misturar em suas produções altas doses de realismo, morbidez e violência mesmo entre as fantasias mais delirantes, ficando fascinado com os alienígenas asquerosos, os cenários sujos, a ambientação techno-decadente e a qualidade dos efeitos visuais de Alive In Joburg. 
  Em 2007, Blomkamp e Peter Jackson uniram forças pela primeira vez por meio dos curta-metragens promocionais para o lançamento do game Halo 3 do console X-Box da Microsoft. O cineasta sul-africano dirigiu enquanto que a Weta, a diabólica empresa de efeitos visuais do diretor de O Senhor dos Anéis, se encarregou dos EFX.
 Apesar da curta duração, esses vídeos de Halo possuíam um visual espetacular, forte e com um realismo singular em produtos relacionados a ficção científica. Os curtas de Blomkamp eram verdadeiras versões espaciais/futuristas de produções de guerra viscerais e intensas como O Resgate do Soldado Ryan e Falcão Negro em Perigo, mostrando soldados humanos e alienígenas assassinos se engalfinhando em combates ainda mais ferozes dos que os elaborados por James Cameron em Aliens.
 Dois anos depois Peter Jackson e Neill Blomkamp se aliaram novamente para uma cartada decisiva que iria convulsionar a ficção científica.
 Distrito 9 (District 9, EUA, 2009) produzido por Jackson e dirigido e escrito por Blomkamp, mostrava o encontro entre seres humanos e criaturas alienígenas sob um prisma nunca visto nas telas até então. Simultaneamente violento, triste, eletrizante, perturbador e com uma marcante influência da fase gore de David Cronenberg, Distrito 9 foi a surpresa ímpar do cinema em 2009. Também foi uma das raríssimas ocasiões em que uma produção de ficção científica foi indicada ao principal oscar da academia. Desde os tempos de O Enigma de Outro Mundo, Aliens e Robocop que uma major de Hollywood não utilizava efeitos visuais e câmeras de última geração para produzir uma sci-fi que não possuía visual bonitinho e que não fosse endereçada para toda a família, muito pelo contrário...A estréia de Neill Blomkamp em longas-metragens era uma daqueles saudáveis aberrações que surgem nos cinemas de vez em quando: uma produção de espírito radical e independente, mas bancada por um grande estúdio.
 Com o acachapante sucesso de público e crítica que foi Distrito 9 era óbvio que o próximo projeto do diretor sul-africano fosse esperado com ansiedade e que todos os passos deste fosse, a partir de então, observado com olhos de microscópio eletrônico pelos fãs de ficção científica e pela comunidade geek.
 Quatro anos depois de sua estréia Blomkamp finalmente retorna as telas com uma outra sci-fi, intitulada Elysium ( EUA, 2013). Mas Elysium possuía algumas diferenças em relação a Distrito 9: era ainda mais pesado, provocativo e sombrio do que este. Beleza!
 Outro contraste entre Distrito 9 e Elysium é que o primeiro, apesar de toda a sua parafernália eletrônica e tecnológica, se passava em nossos dias, o que foi, de certa forma, uma barreira para a criatividade dark de Blomkamp, enquanto que o mundo do segundo está situado cerca de 150 anos no futuro.
 Agora Blomkamp possuía um universo infinitamente maior, e mais cruel, para poder dissecar todas as suas obsessões com relação a política, injustiças sociais e o lado escuro do ser humano.
 Portanto, apesar de se passar em um futuro longínquo com direito a uma estação espacial e repleto de naves estelares, não espere nada de space ópera, robôs engraçadinhos, cenários lindos e valores morais em Elysium. Aqui o negócio é cyberpunk em estado bruto!
 Elysium é uma ficção científica em que o vilão que deseja destruir a humanidade não é uma inteligência artificial mega-poderosa, algum monstro alienígena ou um exército de androides assassinos, mas uma ameaça muito mais global e que já vem sugando nosso sangue desde a Idade Média: o capitalismo.
 Assim como em sua obra anterior, em Elysium Blomkamp ataca o problema de frente, sem concessões, frescuras ou muitas metáforas.
 É o ano de 2154, e se você leitor tem um pouco de neurônios nesse seu cérebro e costuma olhar, pelo menos as vezes, para o mundo ao seu redor já deve imaginar que, se nossa sociedade continuar seguindo à risca a cartilha escrita por bancários multimilionários e mega corporações, o século XXII não vai ser algo  muito agradável de se ver...É isso aí, a Terra daqui em torno de 150 anos será um imensurável gueto global. Uma favela da Rocinha planetária habitada e controlada pela escória da humanidade: traficantes, ladrões, viciados, assassinos, hackers, mercenários, doentes e miséria, muita miséria se espalhando, sem fim, para todos os lados.
 Depois de sugarem como vampiros todas as reservas naturais de nosso planeta, os yuppies e milionários se mudaram para uma grandiosa e luxuosíssima estação espacial localizada na órbita, e portanto acima de toda a imundície, terrestre chamada Elysium.
 Lá, poucos privilegiados, leia-se endinheirados, desfrutam de tudo aquilo que eles destruíram na Terra: ar puro, natureza límpida, tratamentos médicos de ponta e uma vida tranquila e organizada.
 Aqui embaixo, no inferno, aqueles que não sucumbiram a marginalidade se tornaram operários chão de fábrica que trabalham para os ricos com o intuito de melhorar ainda mais o padrão de vida destes em Elysium.
 Como vocês podem ver pouca coisa mudou em 150 anos, apenas pioraram um pouco mais...
 De resto, Elysium parece ter saltado diretamente das eletrizantes páginas tanto de romances cyberpunk barra-pesada como Piratas de Dados e Tempo Fechado, de Bruce Sterling e Count Zero, de William Gibson, quanto de HQs de ficção científica e ação violentíssimas e sinistras como Gunnm, de Yukito Kishiro e Elektra Assassina, de Frank Miller e Bill Sienkiewicz: um herói marginal e decadente, mercenários torpes, psicopatas ultra-pervertidos, executivos frios como a lâmina de uma navalha, toneladas de armamento high-tech pesado, fusão agressiva entre carne/máquina que rouba a humanidade de seres humanos e os transforma, praticamente, em ciborgues e muita, muita ação noir repleta de selvageria, violência escatológica e um realismo perturbador.
 A adrenalina nos filmes de Blomkamp não tem nada da estilização digitalizada dos longas da série Matrix.
 Aqui, o visual futurista e os efeitos computadorizados de ponta estão sempre mesclados a sangue, suor, lágrimas, dor e carne crua. Com cenas de ação instintivas estilo Cinema-Corpo, a lá William Friedkin e Paul Gengrass, sempre filmadas em velocidade máxima e o mais de perto possível para mostrar ao espectador que não se está tentando enganá-lo, que a coisa é para valer.
  É devido a isso que esse novo Enfant terrible do Cinema de Ficção Científica detesta gravar suas cenas dentro do ambiente artificial de um estúdio em meio a telas de fundo verde. Tanto Distrito 9 quanto Elysium tiveram a maior parte de suas tomadas gravadas em favelas de verdade, o primeiro em um gueto sul-africano, o segundo nas ruas imundas de um miserável bairro mexicano, mixando, de forma absolutamente impecável e verossímil, o CGI e os elementos fantásticos com toda a sordidez e a sujeira do mundo real.
 Outra característica notável na obra de Neill Blomkamp é que, da mesma forma que James Cameron, a descrição que o diretor faz de armas, veículos, robôs e equipamentos de alta tecnologia é tão vívida e detalhada que se tornam quase personagens de seus filmes. Em Elysium as câmeras penetram no interior das entranhas do hardware expondo de forma palpável o funcionamento de máquinas futuristas que ainda não existem. Naves espaciais são sujas e pingam óleo, exo-esqueletos cibernéticos de guerra estão enferrujados e repletos de "cicatrizes" de antigas batalhas, metralhadoras e lança-mísseis são riscados e arranhados como devem ser qualquer tipo de equipamento usado em combates. Além disso, todos os equipamentos e produtos mostrados em Elysium possuem marcas do mundo real, como Kawasaki, Bugatti, Nissan, etc.
 Enfim, tudo no filme foi feito e construído para, ao olharmos para uma nave espacial na tela do cinema, sentirmos estarmos vendo algo tão tangível quanto um automóvel estacionado na esquina de nossa casa.
 Todo o realismo e detalhamento do sinistro mundo de Elysium foi feito com o único propósito de tornar o roteiro deste ainda mais provocativo, perturbador e polêmico. Pois, a exemplo de Metrópolis, de Fritz Lang, THX-1138, de George Lucas, Blade Runner, de Ridley Scott e outro marcos do Cinema de Ficção Científica Distópico, o segundo longa de Neill Blomkamp, assim como o seu primeiro, é uma obra que convida ao debate. Um filme que não quer agradar a ninguém e sim incomodar a todos...
 Quanto a nós, espectadores de cinema do Terceiro Mundo, a primeira, e mais forte, sensação que este longa nos provoca em seus primeiros minutos de exibição não é tanto a de nos sentirmos incomodados e assustados, mas sim uma desalentadora sensação de identificação. Pois para nós o futuro de daqui a 150 anos de Elysium já chegou faz tempo...



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Porquinhos da Índia

 Não sei exatamente quando que o Mundo Ocidental se tocou de que o Cinema Asiático é tão foda e visionário em produções de horror e fantasia quanto o é em matéria de filmes de ação e artes marciais, mas eu descobri isso em uma viagem de metrô ligando minha cidade, São Leopoldo, à Porto Alegre em algum ponto entre os anos de 1999-2000.
 Na ocasião eu estava no trensurb com um amigo geek/headbanger que compartilha comigo a paixão pelo lado mais animalesco da cultura pop: Cinema de Horror, cyberpunk, HQs sádicas, death metal, Robert E. Howard, Clive Barker, etc. Essas coisas que podem queimar o filme de sua vida social e profissional.
 Este meu amigo sacou, de uma pasta que estava carregando, um punhado de folhas com textos que ele havia imprimido dos mais obscuros sites das profundezas do Inferno Digital, enquanto me perguntava: "Tu já ouviste falar em filmes de terror japoneses"?
 À época este subgênero cinematográfico me era tão desconhecido quanto o é para um sem-teto uma banheira com hidromassagem, mas como sou uma criatura eternamente ávida por tudo que contenha as palavras terror, horror, sangue e carnificina arranquei as páginas das mãos de meu amigo e comecei a devorá-las em meio ao chacoalhar dos vagões dos trens e as ladainhas depressivas de passageiros aidéticos e cancerosos miseráveis implorando alguns tostões aos demais viajantes para comprarem os medicamentos paliativos de suas doenças sem volta.
 Aquelas produções de horror nipônicas eram tudo que eu sempre mais amei no gênero: brutais, nojentas, exageradas, absolutamente monstruosas, totalmente malignas, inteiramente devassas, zero de boas intenções.
 Dentre os vários aspectos inovadores, em comparação com os bons-modos das burocráticas produções de horror do Cinema do Ocidente, naqueles aterradores filmes japoneses estava a crueza da maioria dos temas abordados, quase sempre pertencentes ao polêmico universo das películas Mundo Cão (Faces da Morte, Traços da Morte, vídeos reais de necropsia, etc) e dos míticos filmes snuff.
 Para qualquer aficionado, como eu, que se preze de filmes de horror os snuff são a fronteira final do gênero. Aquele tesouro que o connoisseur do gore, geralmente, irá procurar incansavelmente durante toda a sua existência mesmo que a única recompensa, caso um dia venha a encontrá-lo, sejam suores frios e pesadelos noturnos pelo resto de sua vida. A diferença entre os vídeos da série Faces da Morte e congêneres, encontrados em qualquer vídeo-locadora da vida, e os snuff é que os primeiros não passam de documentários, por vezes fake, mostrando as mais variadas atrocidades, sem nenhuma ligação entre si, ao redor do Globo como matanças de gado em frigoríficos, execuções em cadeiras elétricas, acidentes fatais, etc. Apesar de pesadíssimos, esses filmes mostram matanças que são fruto de desgraças como, por exemplo, as causadas pela força da natureza ou fazem parte de uma violência institucionalizada como as praticadas por matadouros, execuções de criminosos condenados a pena de morte, etc. Quer dizer, por mais nauseante e truculento que sejam as imagens está tudo dentro da lei.
 Já com as produções snuff o buraco seria bem mais embaixo...Aqui todo mundo envolvido no filme, menos alguns atores, sabem, desde o início, que o negócio vai ser para valer, sendo que são, na maioria das vezes, os próprios intérpretes da produção os perpetradores dos massacres. Além disso existe um roteiro, repleto de carnificinas, mortes, torturas e estupros, com começo meio e fim que é seguido a risca.
 É, supostamente, assassinato frio e real praticado em tempo real em frente as câmeras. Maldade pura.
 O termo snuff foi inventado no início da década de 1970 pelo roqueiro e escritor beat Ed Sanders que divulgou que a seita de psicopatas, liderada pelo notório assassino Charles Manson, havia filmado algumas das mortes que tinha cometido na década anterior.
 A natureza grotesca e singular de tal atrocidade assustou a população e chamou a atenção das autoridades que deram início a uma meticulosa investigação federal nos Estados Unidos, que contou com a ajuda de experts em efeitos especiais, para analisarem a fundo a veracidade dessas produções malditas que, a partir da polêmica declaração de Sanders, começaram a se espalhar nas grindhouses pelo Mundo a fora.
 Após 20 anos esmiuçando os supostos "filmes que matam" o FBI chegou a conclusão de que tudo não passava de efeitos visuais, alguns assustadoramente realistas, outros, nem tanto...
 Entretanto o mal já estava feito e a semente dos snuff foi plantada no imaginário popular tornando-se uma lenda urbana, assim como o Velho do Saco, A Gangue do Palhaço, e os Traficantes de Orgãos Humanos.
 Além disso os "filmes que matam" envenenaram a cultura pop turbinando as imaginações de escritores, cineastas, etc. Sendo citados, em maior ou menor grau, tanto em obras literárias, como o clássico da FC Neuromancer, de William Gibson, quanto em longas como Videodrome, de David Cronenberg, Emanuelle In America, de Joe D' Amato e Strange Days, de Kathryn Bigelow.
 Com todo esse macabro currículo em suas costas não foi a toa que, dentre todas as sadicamente inventivas produções de horror que haviam naquelas páginas impressas pelo meu amigo, a que mais me tinha impressionado e mexido com a minha imaginação era um snuff. Um como eu nunca havia ouvido falar antes...
 O filme japonês Flowers of Fleisch and Blood é, ao lado do italiano Canibal Holocaust, uma das produções mais polêmicas de todos os tempos e uma das que mais conseguiram enganar e chocar os espectadores ao fazê-los acreditar que, finalmente, estavam diante de um autêntico "filme que mata".
 Um dos fatores que mais contribuíram para toda a controvérsia em torno de Flowers of Fleisch and Blood foi, sem dúvida, o envolvimento do conhecido ator hollywdiano Charlie Sheen que viu uma cópia do filme na casa de uns amigos e, horrorizado com o realismo da obra, a denunciou para o FBI afirmando para as autoridades que se tratava de um snuff fidedigno.
 Após uma extensa investigação, em que os realizadores do filme tiveram que mostrar aos policiais, por meio de um making of, como foram, passo-a-passo, realizados os incríveis efeitos visuais da produção, chegou-se a conclusão de que, mais uma vez, tudo não passava de pura ficção.
 Bom, a partir deste dia no metrô eu comecei a adquirir qualquer tipo de publicação impressa que pudesse me passar algum tipo de conhecimento sobre este diabólico e lendário clássico gore. Algo que, diga-se de passagem, devido a natureza ultra-tétrica da obra, sempre foi muito difícil de encontrar.
 Foi só quando tive mais acesso a internet, que é uma verdadeira porta escancarada para dentro do lado mais negro do Homem, que eu pude mergulhar de cabeça em minha pesquisa sobre Flowers of Fleisch and Blood. Logo descobri que se tratava de um curta-metragem, o segundo, pertencente a uma série composta de onze episódios e com o sugestivo título Guinea Pig. A série foi idealizada pelo mestre dos mangás de terror, Hideshi Hino e pelo produtor Satora Ogura.
 O título é uma alusão aos porquinhos-da-índia (guinea pig, em inglês) e aos ratos de laboratório que são torturados e dissecados sem piedade por pesquisadores e especialistas das mais variadas áreas em prol do avanço científico.
 Mas na série Guinea Pig a única função das experiências com os "porquinhos da índia" é testar os limites do sadismo humano...
 A pouco mais de um ano atrás eu finalmente consegui adquirir dois exemplares da obra de Hino e Ogura.
 Bem, agora o que eu posso dizer é que a espera de treze anos, desde aquele dia no metrô, valeu cada segundo...
 Guinea Pig 2: Flowers of Fleisch and Blood (Za ginipiggu 2: Chiniku no Hana, Japão, 1985), dirigido e escrito por Hideshi Hino é, simplesmente, empolgante tanto para os aficionados do grand guignol, quanto para técnicos e estudiosos de efeitos especiais. Um impecável exemplar de Cinema Extremo que arrasta o espectador para dentro de um verdadeiro inferno gore. Um filme que, definitivamente, não é para qualquer um.
 Apesar de, por um certo tempo, Flowers of Fleisch and Blood ter causado tanta controvérsia quanto A Bruxa de Blair e Canibal Holocaust, o curta de Hideshi Hino não foi realizado nos clássicos moldes found footage das obras de Deodato e da dupla Eduardo Sánchez/Daniel Myrick.
 Na verdade, um olhar mais atento em Za ginipiggu 2 perceberá que o filme possui uma gravação de imagens fluída e edição profissional. Distante das imagens tremidas e câmeras nervosas manipuladas pelos próprios atores como ocorre na maioria dos candidatos a snuff. E apesar da narrativa iniciar com um letreiro informando o espectador que o filme foi realizado em formato 8 mm e entregue em um pacote por um doador anônimo na casa do desenhista Hideshi Hibino ( uma mal-disfarçada referência ao próprio diretor/roteirista/produtor da série Guinea Pig) em nenhum momento do curta se vê alguém manipulando alguma câmera, como é comum neste tipo de produção.
 Flowers os Fleisch and Blood praticamente não possui roteiro. É apenas um psicopata asqueroso estraçalhando o corpo de uma mulher até o seu último pedaço da forma mais realista, explicita e orgânica possível. É o ancestral de todos os torture porn que foi até aonde nenhum de seus descendentes, até hoje, tiveram o sangue-frio de irem.
 O assassino vai narrando de forma íntima e detalhada, para o espectador, todos os aspectos e pormenores das técnicas de tortura crescentemente inimagináveis que vai aplicando em seu "porquinho da índia". Tudo envolto por uma subliminar atmosfera de erotismo mórbido que parece dominar tanto o algoz, quanto a vítima.
 A mágica, ou seria melhor dizer magia negra, que dá vida ao filme de Hino são os efeitos especiais de maquiagem e próteses humanas que fariam, mesmo hoje, vinte e oito anos depois, o pessoal da Legacy, Creature Shop e KNB ferverem de inveja.
 Entre as dezenas de desgraceiras gore/splatter fodásticas que espirram na tela a cada segundo durante a exibição de Za ginipiggu 2 destacam-se a evisceração do sistema digestório,--- quem possui algum conhecimento em anatomia sabe que nosso estômago, intestinos, etc, formam um grande bolo que, se desenrolado, pode atingir até doze metros de comprimento. Um detalhe anatômico e fisiológico que foi rigorosamente respeitado pela equipe de efeitos especiais do filme,--- e os cotos amputados dos braços da vítima que se movimentam em espasmos arrepiantes capazes de deixar de boca aberta até o mais veterano fã de Cinema Extremo.
 Enfim, nesses tempos em que o cinema moderno tem  a seu dispor toneladas de hardware e software de última geração e mesmo assim parece sofrer de uma aguda crise de falta de criatividade e ousadia é quase inacreditável ver tudo o que os realizadores de Flowers of Fleisch and Blood fizeram a quase trinta anos atrás com, praticamente, um boneco e alguns litros de sangue falso.
 O curta fecha com o torturador proferindo um longo, denso, profundo e aterrador monólogo que serve como pano de fundo para a exibição das mais apavorantes, grotescas, macabras e surreais imagens, não apenas do próprio Za ginipiggu 2, mas, provavelmente, da própria cinematografia de terror de todos os tempos.
 Guinea Pig: Devil's Experiment (Za ginipiggu: Akuma no jikken, Japão, 1985), foi dirigido pelo outro hemisfério cerebral por detrás da série, o produtor Satoru Ogura, e é o filme que inaugurou a franquia.  Entretanto, assim como aconteceu com os demais exemplares de Guinea Pig, ele foi ofuscado por toda a polêmica que cercou Flowers of Fleisch an Blood. 
 Porém, isso não faz com que Devil's Experiment não seja uma experiência quase tão arrebatadora e tecnicamente primorosa quanto o seu sucessor.
 Seguindo a mesma linha que o segundo exemplar da série, Akuma no jikken também deseja confundir e perturbar o espectador ao tentar se passar por um snuff real. Entrementes, o filme, que assim como todos os demais da série também é um curta metragem, possui imagens e movimentos de câmera tecnicamente superiores aos da obra de Hino, rompendo de vez com o estilo, tão caro ao gênero snuff, found footage.
 Mas esse aspecto, que tira um pouco da crueza da obra, é compensado pelos dados informativos que aparecem nos cantos da tela, explanando que tipo de experimento está sendo realizado naquele momento com a cobaia. Isso dá um ar maior de experimento científico frio e racional a Devil's Experiment, realizado pelos "cientistas" de forma distante e indiferente, fazendo mais jus ao título da série e acentuando o sadismo.
 Akuma no jikken é mais contido em seu lado propriamente gore do que Chiniku no Hana, em compensação a violência e horror psicológicos sofridos pela vitima é mais intenso do que no curta de Hino.
 Mas não vá pensando que Satora Ogura realizou algum slasher imbecil para adolescentes do ensino médio ou alguma obra de terror subliminar como O Silêncio dos Inocentes e Seven. Embora não sejam tão constantes quanto em Flowers of Fleisch and Blood, o sangue e as tripas quando surgem em Devil's Experience reviram o estômago e estraçalham os nervos de muito machão que tem por aí. Da mesma forma que Chiniku no Hana, Akuma no jikken também é para poucos.
 Infelizmente, Ogura não teve a mesma mão forte que Hino no quesito interpretação de atores. Isso fez com que, quase até a metade do filme, as interpretações, tanto dos algozes quanto da vítima, soem irritantemente artificiais e cheguem as raias do cômico.
 Mas isso não estraga a obra que do meio até o seu final pega realmente pesado, culminando na antológica cena do close-up da perfuração ocular que deixa até ao mais cético dos cinéfilos em dúvida se o que ele está vendo é, ou não, real, ou se, ao menos, não utilizaram um cadáver humano para realizar a tal cena.
 Como acontece com a maioria de fenômenos pop japoneses, as raízes da série Guinea Pig estão nos cultuados mangás ( histórias em quadrinhos nipônicas). Hideschi Hino criador, produtor (ao lado de Satora Ogura), e diretor/roteirista de dois episódios da série ( Flowers of  Fleisch and Blood e Mermaid in the Manhole) é um dos mais famosos mangakás do Japão. Hino é expert em mangás de horror radical repletos de cadáveres putrefatos, criaturas monstruosas e assassinos sanguinários.
 Antes que alguém aí comece a pensar que os japoneses são os seres mais doentios do universo, devemos entender de que se trata de um povo com valores e tradições completamente diferentes da maioria dos países ocidentais.
 O Japão nunca aceitou o cristianismo, tampouco as ideias de Freud. Devido a isso eles vêem o sexo e a violência de um ponto de vista bem mais livre e sem encucações.
 Para os japoneses pouco importa se você é sadomasoquista, homossexual ou pervertido. O que vale para eles é se sentir a vontade com suas taras e preferências sexuais.
 E nem por isso a sociedade japonesa é um poço de violência, muito pelo contrário, trata-se de um dos povos mais educados e gentis entre si do planeta. Enquanto que no Brasil, um dos países mais cristãos do mundo, impera a barbárie e a truculência.
 Mas não vamos nos aprofundar em questões sociológicas e filosóficas...O que importa é que Guinea Pig é uma das séries de filmes de terror mais fortes e polêmicas de todos os tempos e uma das que mais contribuíram para perpetuar e espalhar o mito dos snuff . Também são os exemplares de Cinema Extremo mais revolucionários em termos de confecção de efeitos especiais dos últimos tempos. E que, muito provavelmente, deve ter servido de escola para alguns dos maiores experts de efeitos visuais de Hollywood e do Mundo. Experts esses que, é quase certo, nunca revelarão que se basearam em uma doentia série de horror japonesa para elaborarem os inovadores efeitos de suas produções milionárias. Assim como é pouquíssimo divulgado que a edição de som de O Exorcista, premiada com o oscar da categoria, foi produzida por um técnico de som oriundo das produções malditas do obscuro cineasta chileno Alexandro Jodorowski, ou que os programadores dos supercomputadores da Weta Digital que criaram o Mundo de Avatar de James Cameron devem muito de seu aprendizado aos banhos de sangue e vísceras que fizeram a fama da empresa de efeitos especiais de Peter Jackson, lá em seus primórdios.
 Bom, enquanto isso o verdadeiro snuff aguarda por nós nos porões de alguma vídeo-locadora decadente ou escondido nos fundos de uma sex-shop sadomasoquista...

 Agradecimentos a Carlos Thomaz "Canibal" Albornoz.










 


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A Morte Também Ama

 Dentre todas as parafilias a mais radical, repugnante e aterradora é, sem dúvida, a necrofilia.
 Mesmo o Cinema de Horror, esse monstro que se alimenta incessantemente dos aspectos mais negros do Homem, parece temer a necrofilia.
 São raríssimas as produções do gênero que tratam do assunto sem nenhum acanhamento. Até o desumano e seminal Hellraiser, dirigido pelo Marquês de Sade moderno, Clive Barker, apesar de ter a necrofilia como um de seus temas centrais, aborda a questão com luvas de pelica.
 Uma das únicas produções até hoje com coragem para encarar de frente este desvio sexual e mostrá-lo em suas características mais íntimas e grotescas foi a obra-prima do Cinema Underground alemão, Nekromantik (Alemanha, 1987), dirigida por Jörg Buttgereit.
 A grande genialidade de Buttgereit em Nekromantik não foi apenas escancarar cenas das mais macabras e absurdas práticas de necrofilia da forma mais explícita que se possa imaginar, proporcionadas pelos brilhantes efeitos especiais splatter típicos do Cinema Fantástico Europeu, mas mostrar os praticantes desta apavorante tara como "pessoas normais" como aquela que você vê todos os dias quando se olha no espelho.
 Além de serem os protagonistas do filme o casal de necrófilos, formado por Rob, um simplório limpador de rua e Betty, sua atraente e ociosa namorada, não possuem visual dark, tiques nervosos ou qualquer tipo de aparência estranha característica da maioria dos vilões de filmes de horror, pois Nekromantik é uma obra além do bem e do mal e muito distante da estereotipada dicotomia mocinho x bandido. Como na vida real, no filme de Buttgereit a  fealdade dos monstros se encontra escondida em seus interiores. O inferno está na alma e não na carne.
 Mas Rob e Betty não são apenas os protagonistas da trama. É através dos olhos deles que o espectador vê a prática  da necrofilia. Como se o casal fosse o diretor do filme e manipulasse a câmera.
 É por isso que somos conduzidos pelo terrível mundo de fetiches repugnantes de Rob e Betty com a maior naturalidade possível, como se estivéssemos visitando um parque de diversões. Os amantes não fazem caras e bocas de malignidade absoluta enquanto trafegam por entre as dezenas de recipientes contendo os mais diversos tipos de órgãos humanos asquerosos e se sentam em mesas decoradas com ossadas, mas conversam amavelmente entre si e preparam o jantar da forma mais trivial possível. É por isso que o ménage a trois entre o faxineiro, sua namorada e a carcaça de um cadáver em adiantado estado de apodrecimento não tem como soundtrack de fundo algum bombástico heavy metal, mas uma encantadora melodia romântica. A cena tampouco é filmada através de uma agressiva edição clipada típica de sequências violentas e doentias, mas por meio de longas e estilizadas tomadas em slow-motion.
 É justamente essa normalidade e romantismo com que as cenas mais repugnantes que se possa conceber são tratadas que faz de Nekromantik uma obra tão perturbadora, incômoda e arrebatadora.
 Ao mostrar o seu filme como um lírico romance, Buttgereit, como se fosse um Nelson Rodrigues grand-guignol, joga o espectador nas vísceras da mais profunda intimidade do casal necrófilo. Exatamente por mostrar a necrofilia pelos olhos de seus praticantes, ou seja, como sendo algo absolutamente normal, e não por meio de um cineasta querendo apenas chocar o espectador com imagens grotescas que a película se tornou tão nauseante e assustadora até a alma.
 São Betty e Rob, duas pessoas perdidamente apaixonadas pela morte e pela decomposição da carne, que estão contando a sua própria história, então nada de desviar a lente da câmera nos momentos mais íntimos do casal, nada de aliviar as sequências mais barra-pesada, para nós, não para eles, com cortes rápidos.
 Com um currículo assim você pode estar imaginando que Nekromantik é uma obra de apelo exclusivamente visual que dialoga apenas com os instintos mais primitivos do ser humano.
 Ledo engano.
 Abaixo da superfície splatterpunk do filme se esconde um profundo oceano do mais aterrador cerebralismo que por meio de metáforas arrepiantes discute as intrínsecas, e que a maioria de nós prefere ignorar, relações que existem entre a vida e a morte e o amor e a violência. Como na cena em que, ao assistirem a um diabólico slasher, os casais de namorados no cinema vão se excitando e se acariciando de forma cada vez mais intensa a medida em que, na tela, a violência, o sangue e o macabro vão se tornando cada vez mais acentuados.
 Ao lado do italiano Ruggero Deodato, o alemão Jörg Buttgereit foi um dos pouquíssimos cineastas a mostrar nas telas sem nenhum tipo de concessão toda a brutalidade, loucura, podridão e miséria da raça humana rejeitadas e escondidas a todo o custo pela sociedade.
 Rebelde e contestador desde cedo, Buttgereit odiou fazer a sua Primeira Comunhão e foi justamente com um presente, uma câmera 8mm, que recebeu em sua formatura desta baboseira cristã que o futuro realizador de Nekromantik conheceu a sua arma perfeita para agredir as instituições e esfregar na cara do Homem "civilizado" o animal que este verdadeiramente é.
 A partir daí Jörg Buttgereit, que além de diretor também é técnico de efeitos especiais, seguiu realizando produções independentes cada vez mais ambiciosas e ousadas como Der Todesking e a continuação de seu clássico: Nekromantik 2, sempre misturando Cinema de Arte e experimentalismo com o mais afiado horror hardcore.
 A exemplo do restante da obra de Buttgereit, Nekromantik é somente para os fortes e absolutamente contra-indicado para espectadores tímidos de estômago delicado e imaginação fraca. Pois a obra demonstra de forma veemente que o Cinema Fantástico é muito mais do que apenas monstros, naves espaciais e elfos. Cinema Fantástico é acima de tudo subversão, rebeldia e liberação. E é por isso que ele encontra em Nekromantik um de seus representantes definitivos!








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Revolução Pop

 Quando eu tinha treze anos de idade, e, como todo o bom aluno vagabundo e rebelde, repetia a quinta série uma professora de História falou para minha classe uma frase que foi para mim como um soco na boca do estômago e mudou a minha vida e a maneira de eu ver e pensar sobre o país onde eu vivo para sempre: "O Brasil não foi descoberto com a intenção de ser colonizado, mas sim de ser explorado".
 Acredito que tenha sido no instante em que escutei essa frase que a inocência de minha infância e adolescência começou a atrofiar, apodrecer e morrer. Foi aí que eu comecei a trilhar a espinhosa estrada que leva à vida adulta. Foi aí que eu percebi que vivia atolado até o pescoço em um mar de merda. Foi aí que a ficha caiu.
 Essa professora, da qual infelizmente eu não me recordo mais o nome, foi a primeira professora de História de verdade que eu tivera até então. Ela era uma professora que estudava a história do Brasil de dentro para fora. Uma docente que não apenas analisava as mazelas de nossa sociedade, mas que as vivia diariamente, que se indignava e se enfurecia com elas. Ao contrário dos demais professores que haviam me "ensinado" esta disciplina em séries e anos anteriores, e que mais pareciam estrangeiros do Primeiro Mundo vendo o meu país de longe e que falavam sobre as nossas revoluções, guerras e política de forma fria e distante como se estivessem narrando lendas de um reino mítico, aquela professora ensinava a verdadeira história do Brasil. E o fazia como uma brasileira de verdade e não como uma marionete que só falava aquilo que estava na cartilha dos militares que ainda governavam o Brasil aquela época.
 De lá para cá as coisas só pioraram, ou, na melhor das hipóteses, continuaram na mesma: governos ditatoriais, neoliberais, de direita, de esquerda, pouco importava: a grande maioria do povo brasileiro sempre continuava a ser esmagado e feito de idiota por uma pequena parcela de nossa sociedade que se autodenomina "a elite", mas que na verdade não passam de um corja podre de marginais torpes disfarçados de políticos e intelectuais. Aprendi que o tal "jeitinho brasileiro", como nos mostra o brilhante romance Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, não passa de um eufemismo cínico para corrupção, roubo, assassinato e todas as espécies de contravenções mais baixas que se possa imaginar. Descobri que o povo brasileiro tem muito pouco de gentil e humano, que é a imagem que os estrangeiros tem de nós, e muito de animalesco e cruel. Saquei que na maioria das vezes o governo é um mero reflexo da população para quem governa e que no Brasil a palavra democracia, desde muito antes do advento da internet, sempre foi algo virtual.
 Venho sentindo na carne, durante todos esses anos, os efeitos daquela frase proferida por minha professora de História a quase trinta anos atrás.
 Finalmente, depois de quinhentos anos sendo massacrado com todo o tipo de escravidão: física, ideológica, financeira, etc, as recentes, e, espero que permanentes, manifestações populares parecem darem um sopro de autêntica rebeldia e revolta contra os séculos de deturpação absurda de quase todos os segmentos da Sociedade Brasileira.
 Acredito que o motivo de que, desta vez, o grito de "Basta"! do povo seja autêntico não apenas porque a revolta veio direto das massas populares sem o incentivo de partidos políticos oportunistas e sindicatos, mas  porque agora os manifestantes não ostentam como símbolos de seu ódio contra o Sistema cartazes com fotos de líderes farsantes de partidos políticos ditos de "esquerda", mas sim as irônicas  máscaras de um perturbador personagem de uma revista em quadrinhos, que por sua vez foi baseado em um notório terrorista inglês que pretendia explodir todo o parlamento do Reino Unido em 1605, escrita por um sinistro bruxo moderno adepto de drogas alucinógenas.
 A revolução popular brasileira de hoje e agora pode realmente destruir todo esse status quo fariseu que a meio milênio se alimenta de nosso sangue e suor porque dessa vez a revolta não está sendo inspirada e sustentada por políticos charlatões ou símbolos patrióticos que só servem para fazerem lavagem cerebral, mas sim pela cultura pop.
 Quando aqui eu falo sobre cultura pop não estou querendo dizer Michael Jackson, Madonna, Big Brother, bandas emo e outras bostas. Estou me referindo a cultura pop como o lado escuro, revoltoso e perverso do conhecimento de uma sociedade.
 O nível de politização de um povo está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento cultural deste. E desde o início do século XXI que uma das formas de arte mais poderosas que existem vem se desenvolvendo assustadoramente, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina: o cinema.
 Não é possível que  filmes que tenham se entranhado tanto no imaginário popular quanto Tropa de Elite 1 e 2 protagonizado por um personagem como o Capitão Nascimento, que em sua sede homicida de fazer justiça com as próprias mãos tem muito de outro símbolo seminal da cultura pop, o Batman hardcore do clássico cult das HQ O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, que através de cenas visceralmente inesquecíveis, como a em que esmurra quase até a morte um político corrupto do alto escalão, se tornou o arquétipo do brasileiro de saco cheio e furioso com tanta imundície política ao seu redor, não tenha influenciado, em maior ou menor grau, consciente ou inconscientemente, a turba de manifestantes ferozes que invadiu as ruas exigindo vergonha na cara de nossos governantes e equidade imediata em todos os setores da Sociedade Brasileira.
 Tanto Tropa de Elite, quanto outro clássico recente do cinema nacional, Cidade de Deus tem como bases obras literárias que foram escritas por moradores de favelas e soldados do BOPE. Ou seja, ao contrário do incensado autor brasileiro de Literatura Policial e de Ação, Ruben Fonseca, que a despeito de suas qualidades literárias no fundo não passa de um burguês apavorado com toda a degradação social que o cerca e a qual observa de longe protegido pelos muros da Alta Sociedade, foram livros escritos direto do front de batalha por pessoas que diariamente são lavadas pelo banho de sangue que jorra dos subúrbios pelo Brasil a fora.
 Os filmes de José Padilha e Fernando Meirelles fizeram com o povo brasileiro aquilo que o rock, heavy metal e punk nunca conseguiram por aqui: sacudir as nossas cabeças, eletrizar nossos neurônios, esfregar em nossa cara toda a podridão que a sociedade varre para baixo do tapete e nos fazer berrar em volume máximo: CHEGA!!! BASTA!!! FODAM-SE!!!
 Agora, quando saímos as ruas temos como aditivo para turbinar nossa contestação não mais apenas aquelas lentas canções, que devido ao fato de terem sido compostas nos Anos de Chumbo tinham que mascarar as suas letras com toneladas de metáforas sacais, proferidas por cantores de MPB que mais pareciam estarem morrendo do que protestando contra alguma coisa, mas também as raivosas imagens de filmes editados com a fúria e a velocidade de uma rajada de balas de metralhadora e protagonizados por personagens de idiossincrasia radical que parecem arremessar para fora das telas toda a verdade nua e crua do mundo cão.
 Outro fator crucial do atual motim do povo brasileiro, que a exemplo do cinema, está diretamente ligado a cultura pop, e armamento mais pesado usado pelos manifestantes, foram a utilização maciça das ferramentas de comunicação digital.
 Pela primeira vez desde o surgimento da web a população brasileira, em especial os mais jovens, estão se tocando do poderosíssimo instrumento de subversão política e social que é a internet e as redes sociais e não apenas um canal para exibições de narcisismo e moldura para fotos de cartão postal.
 Cada vez que eu vejo o facebook sendo utilizado para divulgar a revolução popular ou a postagem de algum cidadão brasileiro furioso com a putrefação de qualquer aspecto de nossa sociedade, parece que eu estou lendo as eletrizantes páginas das sci-fi terroristas de escritores, cujas ideias se inspiram nos aterradores romances contraculturais de William Burroughs e nas experiências anarco-científicas de Timothy Leary, como Bruce Sterling, William Gibson, Rudy Rucker, Neal Stephenson, etc, com os seus hackers selvagens, netrunners revoltados contra tudo e contra todos, geeks insurgentes e exércitos de terroristas cibernéticos que utilizam as redes de computadores e a realidade virtual para derrubarem governos despóticos.
 Ok, mas a vida de verdade não são filmes, livros e HQ, por mais insurretos que estes sejam. Em nosso Mundo de carne, ossos e sangue as histórias nunca terminam e a guerra é incessante...Então o que será que vai acontecer a partir de agora que este primeiro passo, inédito, na História do Brasil já foi dado?
 Bom, em primeiro lugar deve-se deixar bem claro que esta erupção popular não se deu em todos as classes da sociedade brasileira. Se assim o fosse teríamos resolvido os problemas do país em apenas dois dias de manifestações. As camadas sociais que realmente fariam a diferença nas ruas: a população chão de fábrica que vivem em um regime de trabalho praticamente escravocrata, os milhares de miseráveis que sobrevivem com um salário mínimo por mês e que somam quase 90% de nossa população e que são a infantaria e bucha de canhão da economia brasileira carregando o país em suas costas, não compareceram as ruas para demostrar a sua fúria e indignação.
 Por que não? Se são eles os mais prejudicados e explorados?
 Reponderei esta pergunta com outra pergunta: por que você acha que, até hoje, não se investiu de forma maciça em educação neste país?
 Justamente para acontecer o que está acontecendo agora: evitar que a indignação, o ódio e a revolta não cheguem a contaminar a grande maioria da população. Que a revolução popular, que sempre foi a única forma de realmente mudar de forma radical e profunda os rumos de qualquer país em crise, fique estagnada em pequenos nichos da nação brasileira.
 E agora? É possível extirpar, apenas com uma pequena parcela da população, do Governo a implacável escória mafiosa que a séculos vem estuprando e corroendo nossa sociedade com a sua peçonha ácida?
 Acredito que sim. Mas precisamos cuidar para não cairmos nesse papinho idiota de revolução pacífica.
 Segundo o dicionário Aulete Digital revolução significa: levante armado, insurreição, rebelião...Agora alguns sinônimos de "revolução" segundo o Dicionário de Sinônimos: agitação, inquietação, perturbação, indignação, repulsa, revolta...Enfim, toda espécie de palavra e conceito que passa longe de pacífico ou qualquer espécie de passividade.
 Pois está claro como água que se qualquer povo, de qualquer país que seja na face da Terra, decidiu fazer um levante contra os seus governantes é porque as coisas não estão nada boas, é porque é a hora da ação e não a da apatia. É porque ser pacífico não adiantou porra nenhuma!
 Devemos ir às rua e gritarmos a nossa indignação! Mas se nossos gritos não adiantarem devemos irmos adiante... Então deveremos mostrar para Eles não apenas a força de nossas vozes, mas agora, também, a força de nossos músculos!
 E isso não tem nada a ver com essa chinelagem oportunista que se aproveitou dos protestos para praticarem saques a lojas. Isso é um bando de arruaceiros apolitizados que estão pouco se lixando para as contestações públicas e que a mídia do status quo está utilizando como arma para colocar a opinião pública contra a população que está nas ruas e assim pulverizar a revolução. A mesma mídia aliás, que vive batendo na mesma tecla em todos os meios de comunicação que seus tentáculos conseguem atingir: "de que a revolta deve sempre ser pacífica" e de que os manifestantes devem se comportarem como monjes budistas mesmo quando um exército de policiais a cavalo investem em cima destes...
 Bom pessoal, não a mais nada a falar, pois esta história ainda não acabou, ela está sendo escrita AGORA!  E  nós é que somos o papel, a caneta e a mão com que ela está sendo redigida!
 Foi um grande passo termos trocado, como signo da revolução, siglas políticas pelo terrorista da HQ "V de Vingança". Agora nós só temos que seguirmos a risca os sábios conselhos deste personagem.