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CONTO

   

                                                                     Cristian Voss                                    
                           
                                                              DESCANSE EM PAZ...



 "Feche seus olhos
  Olhe no fundo de sua alma
  Saia de si
  E deixe sua mente vagar
  Olhos gélidos encaram no fundo de sua mente como você morre"

 --- Slayer
 --- "Período no Abismo"


 Maria tinha trinta e oito anos de idade e era uma promotora de justiça de renome, temida pelos mais poderosos marginais e chefes do crime organizado. Havia vencido dezenas de processos judiciais --- mesmo quando estes eram defendidos pelos melhores advogados criminalistas que pudessem existir --- e despachado para os porões das penitenciárias dezenas dos piores espécimes de escória e parasitas de nossa sociedade.
 Tinha um casamento perfeito com um homem maravilhoso que Maria amava e respeitava. Um casal de filhos saudáveis, educados e estudiosos, e, principalmente, Maria era uma cristã fervorosa que nunca faltava às missas de domingo, sempre rezava antes das refeições --- fosse aonde quer que fosse que ela fizesse as suas refeições --- e se confessava com o padre todas as semanas...Mesmo que ela não houvesse cometido nenhum pecado, mesmo assim, a nossa heroína se confessava, religiosamente, todas as semanas. Pois Maria era um exemplo de ser humano perfeito, ou, o mais próximo a que uma pessoa podia chegar disso.
 Maria até mesmo apanhava a anos de seu marido, que, no fim das contas, era "perfeito" e "maravilhoso" apenas para Maria, sem nunca haver reclamado disso. Pois ela havia jurado ao padre, e, portanto, jurado a Deus, que iria respeitar e amar o seu marido, fosse na alegria ou na tristeza, até que a morte os separasse. Pois o que Deus uniu, o Homem não separa.
 Além disso o padre sempre falava, em seus sermões nas missas de domingo, que está na bíblia que o homem é um ser superior a mulher. E que, devido a isso, a mulher sempre deveria se submeter às vontades do homem sem reclamar.
 Maria nunca tinha lido isso na bíblia, mas o padre tinha lhe dito isso, portanto, Deus tinha lhe dito isso. E Deus NÃO mente e ponto final.
 Assim, sendo o tipo de pessoa que era, Maria imaginava que qualquer coisa poderia acontecer em sua vida...Menos que quando essa acabasse ela iria para o Inferno.
 Maria sempre pensou, levando em conta a mulher correta e cristã que sempre fora, que a sua morte iria ser algo épico e digno de um (a) mártir bíblico.
 Só que, como acontece com a maioria das pessoas, o passamento de nossa heroína foi grotesco, repugnante e absolutamente banal.
 Em um lindo entardecer de verão, em uma das ruas mais bonitas e arborizadas da cidade, com centenas de passarinhos multicoloridos cantando melodias suaves enquanto o Astro Rei mergulhava nas águas do rio e incendiava os céus do horizonte, um enorme e velho ar-condicionado caindo aos pedaços e pesando uns trezentos quilos, despencou de um apartamento do décimo oitavo andar de um edifício e esmagou os miolos de Maria como se estes fossem manteiga derretida.
 Ela estava retornando da igreja aonde havia ido se confessar.
 A morte de Maria foi gore total: sua cabeça explodiu como uma fruta podre que é esmagada pela roda de um caminhão. Sangue, misturado com pedaços de couro cabeludo e meninges, jorrou e se espalhou a vários metros de distância da cabeça esmagada.
 O cadáver ficou atirado na calçada por duas horas.
 Durante todo esse tempo ninguém se dignou a chamar ajuda.
 Parecia que todos haviam se esquecido de que aquele era o corpo de uma mulher que passou, quase, que, a vida toda fazendo o bem em prol da humanidade e da moral cristã. Praticamente uma santa.
 Muitos se aproximavam do corpo, entretanto era apenas para satisfazerem as suas curiosidades mórbidas típicas do ser humano ou para vilipendiarem o cadáver. Duas crianças riram e chutaram as pernas da defunta, um necrófilo tirou várias fotos dos restos mortais de Maria, com o seu celular, para depois olhar as fotografias e se masturbar. Uma ladra passou correndo ao lado do cadáver e arrancou a bolsa azul que estava junto ao braço flácido deste. E um filhote de buldogue matou a sua sede lambendo tranquilamente o sangue de Maria que se espalhava pela calçada.
 Duas horas depois, quando as varejeiras já depositavam as suas larvas pelo corpo de nossa azarada heroína, o furgão preto do IML apareceu.
 Como a bolsa que continha os documentos do cadáver havia sido roubada, o corpo sem cabeça de Maria foi jogado, nu e de qualquer jeito, junto com vários cadáveres de indigentes no freezer do IML. Lá ele permaneceu por uma semana até ser identificado por seus familiares.
 A alma de Maria não ficou triste quando abandonou a sua carne. Pois estava com a sua consciência tranquila e tinha certeza de que o único lugar para aonde poderia ir agora, era para cima, para o Céu. Para junto da Santíssima Trindade aonde desfrutaria de uma eternidade de paz como recompensa pela boa pessoa que tinha sido quando viva.
 O fantasma que agora era o corpo metafísico de Maria, brilhava dos pés a cabeça com uma aura dourada.
 Ela vestia o mesmo lindo vestido branco que usara em sua festa de debutante quando ainda era virgem e pura.
 Uma peça de roupa que lhe dava um aspecto sensual sem ser vulgar.
 Maria ergueu os seus olhos para o Céu, para o Paraíso.
 --- Pai. Eu estou indo...Disse ela com a voz mais doce com que já falara.
 Quando deu por si, Maria não estava mais na calçada, muito menos no Céu.
 Ela mergulhava em um abismo de trevas mais largo e profundo do que um buraco negro.
 Algo físico levaria um milhão de anos para atingir o fundo desse abismo. Mas uma alma levava dez segundos.
 Quando bateu no fundo, duro como aço, do precipício definitivo, Maria sentiu uma dor tão intensa e tenebrosa como nunca havia sentido em vida.
 Era como se tivesse quebrado, de uma única vez, todas as costelas de seu velho corpo físico.
 Ao mesmo tempo em que gritava de dor e agonia, ela chegou a uma conclusão que considerava, ao mesmo tempo, impossível e absolutamente concreta: se ela havia descido e não subido, então Maria estava no Inferno.
 A paisagem ao redor dela era de uma desolação muito além da compreensão humana. Exércitos de demônios e de criaturas barkerianas, cujas anatomias nem mesmo uma mente lotada de LSD, curtindo a pior das bad trips, seria capaz de conceber, formavam um enorme círculo fervilhante ao redor do espírito de Maria.
 O Diabo em pessoa estava parado a poucos centímetros da fantasma recém-chegada ao Inferno.
 Ele salivava por aquela alma fresca.
 ---Por que?
 Era só o que ela desejava saber.
 ---Como assim "porque"? Perguntou o Diabo. Este possuía uma forma absolutamente abstrata. Se é que se poderia chamar assim.
 O Diabo era apenas um rasgo no nada. Um retângulo preto, de dois metros de comprimento, por um metro de largura, flutuando no ar. Esse preto era o preto absoluto. O preto que existe no fim de tudo: da vida, do Mundo, da galáxia, do universo...O preto que existia antes de todas as coisas terem início.
 O Diabo é o alienígena definitivo, pois ele era oriundo daquele lugar que fica além de tudo.
 ---Por que eu estou aqui? Perguntou Maria. Fui uma pessoa boa e temente a verdade, a justiça, e, principalmente, a Deus e aos seus ensinamentos durante toda a minha vida!
 ---Maria, eu sou o Diabo e o único Deus que você tem. E é daqui, do Inferno, que todas as pessoas saem antes de nascerem e é para cá que todas elas voltam depois que morrem.
 O Diabo deu um suspiro, como alguém que já narrou aquela mesma história milhares de vezes e continuou: "Você se lembra de como era o Mundo de onde você veio?
 ---Claro que sim! Era um Mundo lindo e perfeito, assim como o é o Senhor meu Deus que o criou!
 ---Não Maria. Não o Mundo em que você vivia, mas o Mundo de verdade. O Mundo lá fora.
 Ela engoliu em seco e compreendeu tudo na hora.
 Aliás, ela sempre havia compreendido. Desde quando era viva e ainda era uma menininha. E não apenas ela sempre soubera da verdade, mas também todos os outros cristãos que existiam no Mundo. Eles sempre souberam, sempre sentiram, entretanto inventavam mentiras para poderem viverem tranquilos, mesmo sabendo que essa tranquilidade seria breve e que, mais cedo ou um pouco mais tarde, eles teriam que encarar os fatos.
 O Mundo e tudo o que existe nele, sempre pertenceu, pertence e pertencerá ao Diabo.
 E quem mais haveria de ter criado um planetinha miserável cheio de dor, doenças, fome, depravações, guerras, maldades e hipocrisia como o nosso?
 Deus? Jesus Cristo? Anjos? Santos? Quanta ingenuidade...
 E aquilo foi o fim para Maria.
 E enquanto o Diabo e os seus monstros se jogavam sobre a alma de Maria, torturando-a com métodos brutais, desumanos e obscenos que seria preciso uma bíblia inteira para descrevê-los, esta, se pudesse pensar em meio a todo o tormento pelo qual estava passando, provavelmente, estaria pensando isso: "Puta que o pariu! Mas porque diabos que eu não aproveitei melhor a minha vida"?

                                                                               FIM


                                                           

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