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OS MUNDOS DE MARIO BAVA

 Para a maioria dos cinéfilos, até mesmo para alguns "fãs" de filmes de horror, o cinema fantástico italiano se resume a produções indigestas, toscas, ultra apelativas e visualmente paupérrimas como longas sobre canibalismo, zumbis, nudez e pornografia. Tudo amparado por efeitos especiais de fundo de quintal.
 Em suma, cinema classe Z.
 Porém, aqueles que gostam, entendem e pesquisam a fundo os filmes de terror sabem perfeitamente que as palavras "indigesto", "tosco" e "apelativo" não são exatamente sinônimo de baixa qualidade em produções do gênero, muito pelo contrário. Além disso qualquer cinéfilo adulto e maduro já sabe a séculos que orçamentos milionários e efeitos visuais opulentos nunca foram garantia de qualidade cinematográfica seja em qual gênero que for.
 Entretanto, para calar a boca de cinéfilos caretas, metidos a intelectuais e covardes e para aquela nova modalidade de entusiastas de filmes de "terror" que vem surgindo nos últimos anos, que eu denominei de Fãs do Bem de Filmes de Terror ou Fãs de Filmes de Terror Politicamente Corretos, resolvi fazer uma resenha de uma verdadeira obra-prima do Cinema Fantástico Italiano que não perde em nada para as melhores obras de Alfred Hitchcock, Ridley Scott e Stanley Kubrick que os críticos de cinema sérios e que se acham superiores a nós, meros mortais, gostam tanto de incensar.
 Como geralmente, e infelizmente, acontece com as obras cinematográficas verdadeiramente boas e relevantes, La Frusta e Il Corpo, uma co-produção entre Itália e França lançada em 1963, é um filme obscuro e, excetuando-se os pesquisadores e connoisseurs de Cinema Fantástico, praticamente desconhecido do grande público.
 Dirigido por um dos mais versáteis e talentosos cineastas italianos, Mário Bava, que aqui assina a direção com o pseudônimo John M. Old, La Frusta e Il Corpo é uma filme de horror com um dos visuais mais espetaculares e impressionantes da história. O requinte estético desta obra de Bava a coloca no mesmo nível  de outros marcos do apuro técnico no Cinema de Horror como O Poço e o Pêndulo ( The Pit and The Pendulum/1961), de Roger Corman, Alien, O Oitavo Passageiro (Alien, 1979), de Ridley Scott, O Iluminado ( The Shining/1980), de Stanley Kubrick, Poltergeist, O Fenômeno (Poltergeist/1982), de Tobe Hopper e O Corvo (The Crow/1994), de Alex Proyas.
 No século XIX, em um opressivo castelo à beira mar, constantemente castigado pelas ondas do oceano sombrio e fustigado pelos ventos gélidos oriundos das imensidões do pélago, uma aristocrática família tenta a todo custo manter as aparências e evitar que a decadência moral de alguns de seus membros engolfem a todos em uma espiral de sangue, sexo e perversão.
 Neste cenário hamletiano temperado com toques de parafilia vivem o casal sadomasoquista Nevenka e Kurt Menliff (Daliah Lavi e Christopher Lee, respectivamente), os parentes destes, Count Menliff (Dean Ardow) e Christian Menliff (Tony Kendal), a bela Katia (Islio Oberon), o empregado da família chamado Losat ( Allan Collins) e um sacerdote conhecido, apenas, como Pastor.
 A partir do momento em que Kurt é assassinado em circunstâncias misteriosas, La Frusta e Il Corpo se transforma em uma belíssima homenagem aos clássicos textos macabros de Edgar Allan Poe e Henry James. Com, a exemplo das histórias de Poe, uma mistura angustiante de clima sobrenatural com horror psicológico que envolve o espectador em uma atmosfera gótica densa, pesada e sufocante.
 Embora as interpretações sejam precisas, com destaque paras as atuações de Daliah Lavi e, é óbvio, Christopher Lee, e os personagens nada maniqueístas, a grande estrela do filme é o seu visual e a primorosa técnica cinematográfica utilizada para compô-lo.
 Da mesma forma que Stanley Kubrick fez em 2001, Uma Odisseia No Espaço, Mario Bava não utiliza o virtuosismo das imagens de La Frusta e Il Corpo apenas como um acessório estético usado meramente para embelezar o seu filme, mas sim como uma forma de ajudar a contar a história. Aqui a fotografia trabalha lado a lado com o roteiro e as interpretações para fazer o espectador mergulhar em um pesadelo e partilhar das mesmas, e terríveis, sensações experimentadas pelos personagens do longa.
 E que fotografia!
 Cada fotograma deste clássico de Bava é uma guerra constante entre Cores, sombras e luz. Os ambientes tétricos do castelo da família Menliff são tão espantosos quanto os cômodos do hotel Overlook, de O Iluminado, o castelo de Vlad Draculea, de Drácula, de Francis Ford Coppola ou a fantasmagórica espaçonave Nostromo, de Alien.
 A exemplo desses outros três clássicos da estética gótica cinematográfica, quase todos os ambientes mostrados em La Frusta e Il Corpo estão sempre, em parte, mergulhados na mais absoluta e espessa escuridão. Essa atmosfera radicalmente sombria transmite ao filme uma sensação de perigo, suspense e tensão crônicos como se a qualquer instante algum monstro tentacular dos Mitos de Cthulhu vá saltar das sombras e arrastar os personagens para um buraco negro de horror e loucura.
 Um exemplo magistral deste medo do desconhecido que devassa o filme do início ao fim são as apavorantes sequências em que uma fantasmagórica mão emerge das profundezas das trevas para agarrar os personagem. Em momento algum do filme é explicitado de onde vem esta mão, se ela pertence a alguma pessoa de carne e osso, a um fantasma de outro mundo, ou se a algo ainda pior.
 A forma como Bava compôs essas cenas, com a mão pálida aflorando de um fundo negro e se aproximando vagarosamente da lente da câmera, colocam o espectador na pele dos aterrorizados personagens e são de um completo e magistral suspense do nível de Hitchcock, Brian De Palma, e de outro esteta dos filmes de terror e thrillers sangrentos italianos, Dario Argento. Para fechar com chave de ouro, o filme encerra com um perturbador final ambíguo tipicamente Kubrickiano. Nos deixando com a eterna dúvida se tudo o que acabamos de presenciar são, de fato, fenômenos paranormais ou, somente, fruto de uma mente enlouquecida.
 Graças a esse completo domínio de Mario Bava sobre a linguagem cinematográfica é possível ao espectador experimentar uma verdadeira imersão no universo gótico de La Frusta e Il Corpo. Com suas sombras quase palpáveis que parecem estarem vivas e respirando podendo, em um piscar de olhos, saltarem da tela e nos envolverem em um abraço gélido. É cinema total!
 Gosto de ficar especulando os visuais alucinantes que um cineasta tão talentoso como Bava criaria, caso estivesse vivo, com uma tecnologia como o 3-D digital. Certamente os nossos jovens e moderninhos diretores teriam muito o que aprender com esse velho mestre.
 Ao lado de Lucio Fulcie e Dario Argento, Mario Bava, nascido na cidade de Reno em 1914, faz parte do grupo de elite do Cinema Fantástico Italiano. E que, juntamente com esses outros dois gênios, foi o responsável por alguns dos cânones que regem as produções de horror, ficção científica e suspense, não apenas na Itália, mas em todo o Mundo e até os dias de hoje.
 Entre os vários clássicos revolucionários da carreira de Bava estão o episódico As Três Máscaras do Terror ( I tre volti della paura/1963), cujo título em inglês, Black Sabbath, inspirou o nome da primeira banda de heavy metal da história, Seis Mulheres Para o Assassino ( Sei Donne Per l' assassino/1964), considerado o marco-zero do giallo. Sempre radical e visionário Mario Bava seguiu desbravando os mares cinematográficos com a fusão horror/sci-fi Planeta dos Vampiros (Terrore nello spazio/1965), produção que foi uma das principais fontes de referência para os criadores de Alien, o Oitavo Passageiro e que contava com a atriz carioca Norma Bengell em seu elenco, Banho de Sangue ( Reazione a catena/1971), um dos primeiros slashers do cinema e que fez a ponte entre este e o giallo e Rabid Dogs um filmaço policial  muito à frente de seu tempo que antecipou em quase vinte anos o estilo tarantinesco de se filmar.
 Infelizmente, Bava faleceu em 1980 quando contava com a idade de 65 anos e ainda tinha muito gás para queimar.
 Entre o legado deste brilhante homem do cinema estão o seu filho Lamberto Bava, o qual eu tive o prazer de assistir palestrando na edição de 2011 do Fantaspoa e que dirigiu, entre outros, o cult grand guignol Demons (1985), e uma irretocável filmografia que influenciou não apenas cineastas, mas também artistas dos mais variados ramos da cultura pop.










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