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LITERATURA PARA MACHO...E PARA MULHERES FORTES

 Algum tempo atrás, singrando pelos oceanos digitais do ciberespaço me deparei com o blog de  André Barcinski, um jornalista especializado em cultura pop cujos textos eu curto pra caralho já a um bom tempo.
 Naquela ocasião, uma das últimas postagens do Barcinski eram sobre os dois únicos livros que o haviam deixado realmente perturbado a ponto deste comentar que havia ficado com medo de lê-los até o final.
 Logo imaginei que algo capaz de deixar assustado um cara que já havia se trancado em um estúdio com os integrantes do Ministry no auge da detonação junkie da banda ( na gravação do cáustico Psalm 69 ) e que havia escrito uma biografia do José Mojica Marins, merecia a minha atenção...
 Os tais livros eram Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy e Meus Lugares Escuros de James Ellroy.
 Não perdi tempo e na primeira oportunidade que tive adquiri as duas obras.
 De Ellroy eu já era fã a um bom tempo, tendo devorado cinco de seus noirs hardcore: L.A. Confidential, Dália Negra, O Morro do Suicídio, 6 Mil em Espécie e Jazz Branco.
 Portanto como eu já sabia a porrada alucinante que me aguardava em Meus Lugares Escuros, decidi começar pelo McCarthy que me era, à época, terreno desconhecido.
 Bom, agora eu posso dizer com total segurança de que se existe algum escritor capaz de realizar um exame analítico tão ou mais minucioso do lado negro do ser humano do que James Ellroy é justamente Corman MacCarthy.
 O único contato que eu havia tido com o apavorante universo deste escritor, conterrâneo de H.P. Lovecraft, fora através da adaptação para as telas feita pelos Coen Brothers de seu romance Aonde os Velhos Não Tem Vez, um dos filmes mais sangue frio em que eu já havia posto os olhos. Portanto eu já esperava chumbo grosso em Meridiano de Sangue....Só que nada consegue deixar você preparado o suficiente para poder debutar de forma tranquila na obra original de MacCarthy.
 Perturbador, bárbara, sanguinária, pesadelesca, inesquecível, grotesca...pffff. Todos esses adjetivos não chegam  nem perto de descrever por completo o que é realmente Meridiano de Sangue.
  Pura Trevas! Esta foi a melhor classificação que eu pude dar para este livro embora saiba que esta minha definição ainda está longe de ser a mais exata para exemplificar esta obra simplesmente arrebatadora e
inesquecível.
  Verdadeiro soco na boca do estômago, Meridiano de Sangue empurra o leitor para o cerne dos intestinos da ala mais primitiva do universo masculino.
  É 1849 e o lado ainda selvagem e imaculado da América do Norte trava um guerra sangrenta e incessante contra o estupro provocado pelos homens "civilizados".
  O México fervilha com os constantes ataques animalescos perpetrados por várias tribos indígenas nativas contra cidades e vilarejos que, a medida que se expandem, vão gradativamente esmagando e enfurecendo a população autóctone local que reage a curra da invasão cultural do homem branco desferindo neste ataques de barbárie e depravação impensáveis.
 A sociedade moderna, por sua vez, contra-ataca a sociedade primitiva com uma violência tão ou mais primeva que a dos índios transformando o México em um infinito círculo vicioso de dor, morte, sangue e corrupção.
 Meridiano de Sangue, assim como 2666 do chileno Roberto Bolano, é um livro tão dilacerante, intrínseco e grandioso quanto a própria vida, uma obra sujeita a infinitas metáforas e analogias.
  A exemplo de  O Coração das Trevas de Joseph Conrad, ao mergulharem cada vez mais fundo no território selvagem mexicano os protagonistas de Meridiano de Sangue (um bando de mercenários assassinos de índios composto por bárbaros e marginais do mais baixo e torpe nível) vão de cabeça ao encontro não apenas de seus inimigos, mas da própria maldade, insensatez e loucura humanas. Um inferno que os mercenários vão encontrar não apenas em seus adversários, mas também, e, principalmente, dentro deles mesmos, que vão se transformando cada vez mais em verdadeiros animais a medida que a vida selvagem e a natureza bruta vão se fechando ao redor destes. Provando que a selvageria é  mesmo o estado congênito do homem e que a civilização é uma mera teimosia momentânea da humanidade, bastando apenas que fiquemos alguns dias em contato com o mundo agreste para que voltemos a nos tornarmos bestas sedentas por sangue e morte.
 Muito da força desta obra de MacCarthy está na descrição riquíssima, crua e ultra-verossímel que o escritor faz da relação do homem com a natureza ríspida que o cerca. O oeste selvagem de Meridiano de Sangue não tem nada da beleza idílica da maioria dos clássicos do western. É um Hades de fogo, gelo e florestas trevosas, um mundo quase pré-histórico, repleto de feras assassinas e indomáveis, onde a luta pela sobrevivência é crônica e terrível e a diferença entre a vida e a morte está em um piscar de olhos.
 A energia e força dos ambientes criados por MacCarthy só encontra um adversário a altura no elenco de personagens do livro, todos anti-heróis bruscos, toscos, grosseiros e de personalidade intrincada que parecem carregar dentro de cada um  toda a complexidade e virulência do ser humano.
 Meridiano de Sangue pode ser descrito como uma "aventura realista" digna das melhores obras de Joseph Conrad, Jack London, Robert E. Howard e Ernest Hemingway.
  Mas no fundo em  Meridiano de Sangue, a exemplo de várias obras dos escritores citados acima, como O Coração das Trevas de Conrad, a "aventura" é apenas um disfarce para MacCarthy narrar na verdade  uma história de terror horripilante capaz de provocar pesadelos ao escancarar toda a decadência, torpeza e sadismo do animal chamado "ser humano".
 Da bárbarie da vida selvagem da América do Norte do século XIX para a barbárie da vida urbana da América do Norte do século XX: Los Angeles, 22 de junho de 1958, nesse dia é plantada  a semente de um furacão virulento que iria abalar tanto as estruturas do status quo ianque e esbugalhar o lado podre e demoníaco do american way of life quanto Charles Manson, a guerra do Vietnan e o LSD que iriam surgir durante os turbulentos anos 60, que nessa época já começavam a despontar no horizonte.
 O nome do furacão: James Ellroy.
  Região dos Estados Unidos abalada pela ação de sua força destruidora: a literatura norte americana.
  Pode-se dizer que Ellroy teve dois nascimentos, o primeiro em 1948 quando surge um menino normal, pacato e saudável, fruto de um lar e de uma família aparentemente tranquilo e salutar. O segundo em 1958, ano em que o menino tranquilo é substituído por um doppelganger impiedoso que engole, anula e substitui por completo a criança saudável da qual se originou.
 Ellroy é um autor de histórias policiais sangrentas e de mistério que descobriu o seu dom para a escrita da forma mais maldita e perfeita possível para um futuro mestre de literatura hard-boiled: um assassinato insolúvel e cercado de devassidão por todos os lados.
 1996: já completamente consagrado como um dos maiores escritores americanos contemporâneos, cujo último trabalho, Tabloide Americano fora recentemente eleito pela crítica especializada como o  "melhor livro de 1995", o autor dos aterrorizantes e polêmicos Dália Negra e L.A. Confidential resolve levar para o prelo um monstro muito mais terrível do que as dezenas de psicopatas, policiais sanguinários e políticos corruptos que infestam as páginas de seus livros: o seu próprio passado.
 Em 22/06/1958, o cadáver de Geneva Ellroy é encontrado em um terreno baldio de Los Angeles. Ela havia sido surrada e estrangulada até a morte com uma meia-calça. No decorrer das investigações a polícia local levanta a hipótese de ter sido um crime passional provavelmente ligado a um assassino em série.
 São os espinhosos desdobramentos da investigação deste crime e o seu impacto sobre a vida e a carreira de escritor do filho de Geneva, James, que o mesmo desvela com 0% de pudor e 100 % de visceralidade em sua autobiografia Meus Lugares Escuros.
 O primeiro grande motivo para se ler Meus Lugares Escuros é que o seu autor já era um puta escritor profissional  e dono de um estilo único anos antes de lançar sua autobiografia. O que significa que o leitor pode ter a certeza absoluta de estar lendo a história da vida do biografado realmente escrita pelo próprio, ao contrário das dezenas de celebridades pelo mundo afora que se tornam "escritores profissionais" de uma hora para outra ao "escreverem" as suas autobiografias, quando na realidade contratam ghost writers para fazerem o trabalho.
 O segundo motivo é que apesar de real, Meus Lugares Escuros é tão sombrio, sinistro, sanguinolento e explosivo, quanto as obras fictícias mais alucinadas e intensas de Ellroy.
 O escritor narra com um detalhamento perturbador e uma intimidade assustadora o verdadeiro inferno que se tornou a sua vida  na qual  ele mergulhou após o assassinato de sua mãe.
 James Ellroy já declarou em entrevistas que para ele escrever Meus Lugares Escuros foi um verdadeiro exorcismo muito mais veemente do que ir a um psiquiatra.
  E é como um psiquiatra ou um psicólogo durante uma sessão com o mais perturbado de seus pacientes que o leitor se sente ao ser metralhado sem nenhuma cerimônia pelas memórias da vida bandida de Ellroy, que vai jogando na cara do leitor da forma mais pornográfica possível todas as vicissitudes do lado negro de sua personalidade: taras, vícios, covardias, comportamentos fascistas, desejos incestuosos,etc. Aqui a palavra "politicamente correto" simplesmente não existe.
 Durante a sua infância e adolescência o escritor foi adepto de quase todas as formas de condutas subversivas e decadentes: estudante medíocre e vagabundo odiado por todos, tarado, ladrão, simpatizante de ideologias ultradireitistas e mendigo. Foi até ao inferno das drogas e voltou, tomou todas e sobreviveu.
 Simplesmente é quase impossível acreditar que um indivíduo com a vida desregrada que teve James Ellroy conseguiu escapar vivo e com a mente (quase) sã.
 Como em suas obras de ficção, Ellroy amarra e mixa a trama principal do livro, a história de sua própria vida e do assassinato de sua mãe, com outros vários sub-plots tão ou mais sórdidos do que o precípuo. Transformando tudo em um emaranhado noir de alta combustão de sangue, sexo e morte com a única diferença de que aqui foi tudo perturbadoramente de verdade.
 Tanto Meridiano de Sangue quanto Meus Lugares Escuros não são em absoluto destinados a leitores de  estômago fraco e imaginação pudica, aqueles que apreciam a literatura da moda tipo livros de auto-ajuda, Paulo Coelho e aventurazinhas pueris de vampiros adolescentes.
 As obras de Cormac MacCarthy e James Ellroy são para aqueles que não tem medo de leituras perturbadoras que lhes provoquem pesadelos e lhes ensine que o planeta Terra está longe de ser o lugar mais  iluminado e seguro do universo.

1 comentários:

Alana Phibes

Para mim parece perfeito!

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