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 Isso não é um livro de aventura.

 King Kong (2005)
                                     A AVENTURA COMO ELA É                                
                                                       
 A cerca de dois anos atrás iniciei, neste mesmo blog, minhas resenhas sobre os filmes De Olhos Bem Fechados e 2001, Uma Odisseia No Espaço, ambos de Stanley Kubrick, afirmando que aquelas eram  obras tão complexas e multi-facetadas que eram necessárias várias décadas posteriores para que nosso intelecto pudesse compreender e digerir todas as minúcias, metáforas e mensagens cifradas escondidas por detrás das poderosas imagens destes filmes.
 Agora, ao começar minha postagem sobre o livro O Coração Das Trevas ( Heart Of Darkness), escrito em 1902 pelo polonês naturalizado inglês, Joseph Conrad, não vejo outra forma de iniciá-la sem recorrer as mesmas justificativas.
 Embora eu não tenha demorado tanto tempo para conseguir absorver toda a gigantesca carga metafísica e a grandiosa opulência estética e "visual" do livro de Conrad, quanto dos longas de Kubrick, pois assisti a 2001 e De Olhos Bem Fechados durante minha infância e adolescência, respectivamente, enquanto que Heart Of Darkness me caiu aos olhos pela primeira vez quando eu já contava com mais de trinta anos de idade.
  Entretanto, embora eu já houvesse entrado a um bom tempo na idade adulta quando o li, também me foram necessários muito conhecimento adicional sobre literatura, cultura em geral e, principalmente, sobre a alma e psiquê do ser humano...enfim, mais conhecimento de mundo, para eu poder mergulhar a fundo no coração das trevas do Homem e conseguir retornar com algo de suas profundezas.
 Isso não é um livro de aventura., balbuciava, ao ler Heart  Of Darkness, o apavorado jovem marinheiro Jimmy (Jamie Bell) durante uma tempestade a bordo da embarcação com destino a apavorante Ilha da Caveira, na magnífica releitura que Peter Jackson fez do clássico King Kong (EUA/1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoesack, em 2005.
 Esta é, para mim, de longe a melhor definição sobre esta seminal obra de Conrad.
 O Coração Das Trevas, seja por meio de sua sinopse, geralmente na linha: Oficial da marinha inglesa é convocado para resgatar um homem perdido em meio a floresta africana, seja pela capa de suas diversas edições: paisagens de selvas exóticas, elefantes e rios caudalosos, pode ser facilmente, à primeira vista, confundido com alguma publicação de aventura juvenil barata.
 Entretanto, assim que iniciar a leitura você verá que estava muito, mas muito enganado em relação a este livro.
 Isso não é um livro de aventura, sussurra o marinheiro Jimmy. E o que ele descobriu sobre o livro não teve coragem de dizer. Que O Coração Das Trevas não é um texto qualquer sobre aventuras escapistas. É, isto sim, um livro de horror. Daquele horror do pior tipo: sério, denso, pesado, adulto.  Aquele tipo de horror polivalente e implacável que nos ataca por todas as frentes: física e psicológica. O horror que não vem do sobrenatural ou do espaço exterior, mas das entranhas do próprio Homem.
 O horror real.
 O horror definitivo.
 Se alguns consideram O Senhor Dos Anéis, de Tolkien, a aventura suprema, Heart Of Darkness seria, então, a desventura definitiva.
 Estava oitava obra de Conrad joga o intimismo niilista de Machado de Assis de cabeça no furacão dos macabros, alucinantes e selvagens épicos de ação e sangue de Cormac McCarthy e Robert E. Howard.
 Dos tétricos e eletrizantes épicos de McCarthy e Howard, Heart Of Darkness antecipa o clima feroz  da "aventura" sem heróis e sem esperança, onde toda a brutalidade e crueza do ambiente selvático e bárbaro por onde transitam os personagens vão penetrando e se misturando ao sangue e a alma destes até transformá-los em animais primitivos em que o puro instinto de sobrevivência esmaga qualquer tentativa de civilidade e humanitarismo.
 Já de Machado, esta obra herda a investigação profunda dos sentimentos mais íntimos dos personagens com resultados, quase sempre, os mais desconcertantes, sombrios e deprimentes possíveis.
 Alguns parágrafos acima, eu mencionei que, a exemplo das obras de Kubrick, me foi necessário muito conhecimento adicional para conseguir compreender de maneira mais abrangente toda a polissemia presente em O Coração Das Trevas.
 E um dos principais instrumentos que eu tive neste sentido foi o clássico/cult filme italiano Cannibal Holocaust (1980), de Ruggero Deodato.
 Esta obra prima do cinema marginal e maldito, assim como os longas do diretor canadense, David Cronenberg, se situa na fronteira limítrofe entre o apelativo e o cerebralismo. Cannibal Holocaust me foi fundamental para a elucidação da simbólica trama elaborada por Joseph Conrad.
 À medida em que vão se embrenhando cada vez mais e mais a fundo nas selvas tropicais escuras, quentes, pré-históricas e intocadas pela civilização, tanto os cinegrafistas aventureiros do final do século XX de Cannibal Holocaust, quanto o aventureiro dos mares do início do século XX de Heart Of Dakness vão, igualmente e rapidamente, vendo suas ilusões quanto as características cultas, racionais e cosmopolitas de uma sociedade civilizada e moderna serem aniquiladas por  uma assustadora regressão, tanto na História do progresso e cultura humanos, quanto na própria evolução antropológica e genética do Homem. Até que todos eles descubram que toda a hodiernidade de nossa sociedade moderna e intelectualizada é apenas uma finíssima película sintética e artificial que cobre, e esconde, embaixo de si um abismo infinito onde borbulha selvagemente o mais orgânico e feroz sangue primitivo.
 A diferença entre O Coração Das Trevas e Holocausto Canibal é que, enquanto que o primeiro nos faz esta aterradora revelação de forma velada e surreal, o segundo nos arrasta para o inferno despido de qualquer espécie de alegoria ou tropo.
 Entretanto, todo esse rebuscamento narrativo elaborado por Conrad para nos contar sua história não a torna mais leve e digerível. Pelo contrário...
 Li, certa vez, que Nostromo, outra obra-prima de Joseph Conrad, seria um exemplo de literatura proto-modernista e que teria preparado a língua inglesa para as técnicas literárias radicais, singulares e revolucionárias da obra de James Joyce.
 Porém, em minha opinião, essa característica inovadora na escrita de Conrad já era gritante em O Coração Das Trevas publicado dois anos, e três obras, antes da saga de Costaguana.
  Neste sentido proto-moderno de misturar o mais duro realismo com rasgos de nonsense e surrealismo, acredito que The Heart Of Darkness dialoga muito com a obra de Lima Barreto, como, os contos Nova Califórnia, O Homem Que Sabia Javanês e o romance Triste Fim De Policarpo Quaresma. E, da mesma forma que estes e outros clássicos da literatura brasileira do imortal autor carioca, os toques de narrativa fantástica amalgamados ao mais fidedigno retrato da alma humana só tornam o relato de Conrad ainda mais medonho e insano.
 Pois, ao tornar cifradas várias questões em sua obra, Joseph Conrad provoca ainda mais a imaginação de seu leitor fazendo com que, na tentativa em elucidar as negras metáforas do texto, a criatividade deste dispare em direção aos mais diferentes, e macabros, territórios da filosofia.
 É impossível explanar sobre O Coração Das Trevas sem mencionar qualquer tipo de comentário referente ao filme Apocalipse Now (EUA/1979), de Francis Ford Copolla. Baseado em Heart Of Darkness, Apocalipse Now é uma das produções mais extraordinárias e impressionantes da história do cinema mundial.
 Agora, após ler e reler a horrenda aventura do marinheiro Marlow em sua obsessiva caçada pelo animalesco Kurtz, percebi que, apesar de ser comumente classificada como uma adaptação livre da obra de Joseph Conrad, Apocalipse Now é, na verdade, uma das transposições mais fiéis de uma obra literária para o cinema.
 O mitológico filme de Copolla pode ter tomada várias liberdades quanto ao roteiro em si de Apocalipse Now, entretanto a ambientação onírica, melhor seria dizer pesadelesca, que o diretor imprimiu em sua visão sobre a guerra do Vietnã é literalmente fidedigna a todo o clima de simbolismo diabólico que impregna as páginas de Heart Of Darkness.
 Enfim, independente de como os teóricos da literatura tenham qualificado Heart Of Darkness, tanto em termos externos: modernismo, realismo, proto-modernismo, naturalismo, entre outros, quanto em  internos: aventura, drama, etc. Eu, particularmente, defino esta obra de Conrad como um dos mais significativos e contundentes exemplos de Literatura Fantástica de todos os tempos. E, neste sentido, tão paradigmático para este gênero quanto o foram O Relato de Arthur Gordon Pyn, de Poe, Nas Montanhas Da Loucura, de Lovecraft, Frankenstein, de Mary Shelley, O Exorcista, de William Peter Blatty entre outros perversos clássicos imortais da bibliografia horrorífica e barroca.
 Lançado na "porta" do século XX, Heart Of Darkness, com sua exata e desconcertante mistura de horror visceral e explícito com pavor psicológico e surreal, não apenas influenciou toneladas de outras obras nas mais distintas mídias, mas também parece ter previsto toda a carnificina e mergulho no lado negro do Homem que caracterizou o século passado: duas guerra mundias, a invenção da bomba atômica, a proliferação aterradora dos assassinos seriais pelo mundo afora, etc.
 Aqueles que possuem algum conhecimento sobre a vida de Joseph Conrad não se surpreendem que, tanto O Coração Das Trevas, quanto o restante da obra do autor, sejam um verdadeiro soco na boca do estômago.
 A exemplo de seu amigo, e também escritor, o norte americano Stephen Crane, Conrad era um aventureiro obsessivo viciado em perigo e adrenalina. Se Crane combateu em uma guerra de verdade "apenas" para conferir se as batalhas perturbadoras que narrou em O Emblema Vermelho Da Coragem realmente correspondiam a realidade de um front, Joseph Conrad, um apaixonado pelos mistérios do mar e por civilizações exóticas, ingressou, quando tinha apenas 16 anos de idade, primeiramente, na marinha francesa e depois na inglesa onde, por quase vinte anos, viajou pelos rincões mais sombrios e sinistros da África, Ásia, América e Europa. Em suas andanças como marinheiro ao redor do globo, o escritor enfrentou de tudo: furacões em alto mar, motins, incêndios e toda a espécie de homens de temperamento bruto e hábitos violentos.
 Enfim, Joseph Conrad conheceu, tanto na natureza, quanto nas pessoas, aquilo que ambas tem de mais feroz e selvagem.
 Hoje, com a disseminação viral da internet, onde qualquer tipo de informação pode ser adquirida por meio de um simples toque na tela do computador, escritores de livros de ação e aventura, daquele tipo de aventura verdadeira: terrível, crua, fatalista e real, como Conrad, Stephen Crane, Hemingway, Jack London, etc, estão praticamente extintos. Eram escritores que usavam os elementos de aventura e ação não para divertir o leitor e fazê-lo esquecer das agruras desse mundo, mas para, justamente, nos fazerem encarar as mais duras adversidades dessa vida e nos ensinar que nosso planeta está longe de ser o lugar mais seguro do universo.
 Portanto, se você, além de gostar de ler, também gosta de olhar profundamente para dentro das trevas que existem no mundo e dentro de você mesmo, seja muito bem vindo à obra de Joseph Conrad, Stephen Crane, Hemingway, entre outros.
 Caso contrário, caia fora agora mesmo.
 E não se esqueça de apagar a luz ao sair.



     

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