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LUZ & SOMBRA

"Aquele que de entre vós está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela".
-Evangelho de São João, cap. 8 (vs. 1.11)

"Eu vejo um homem adquirindo uma mulher a venda, sim a venda
 Tento achar a resposta , porque ele compra a mulher  e não conquista
Oh mulheres imundas vocês nunca ficam sozinhas".
 Este trecho da celerada e sexista, porém desoladamente realista canção "Dirty Women" da ancestral banda de heavy metal "Black Sabbath", resume dos pés a cabeça tanto as vidas das garotas de programa em geral, quanto a da protagonista (baseada em uma pessoa real) do filme "Bruna Surfistinha" (Brasil, 2011).
 O resumo de uma vida feita de  ambiguidades radicais, aonde amor, ódio, prazer, repulsa, riqueza e miséria andam de mãos dadas, se misturam, escamoteiam-se uns aos outros. Uma vida e um mundo em que se é ao mesmo tempo esfuziantemente popular e devastadoramente solitário, uma pessoa que se divide entre o oito e o oitenta o tudo e o nada.
 A uma primeira vista o filme "Bruna Surfistinha" parece ser apenas um filme sensual e provocante (que é como ele foi vendido), unicamente destinado a excitar o público masculino e servir como instrumento para um dos maiores símbolos sexuais brasileiros (a atriz Déborah Secco) destilar ainda mais o seu poderoso sex-appel.
 Porém, basta um olhar um pouco mais aguçado (no caso dos homens, isso quer dizer assisitir ao filme com a "cabeça de cima" e não com "a de baixo") e o espectador se verá cara-a-cara com um drama extremamente pesado e pungente, que tem pouco de sensual e excitante e muito de triste e amargo.
  O diretor Marcus Baldine (mais um cineasta nacional para se ficar de olho) construiu no filme uma falsa narrativa luminosa e sexy, que serve apenas como camuflagem para uma história soturna.

 
  Livre dos grilhões da teledramturgia brasileira (uma verdadeira usina de preguiça mental, aonde os atores parecem sempre representar a mesma caricatura), Deborah Secco dá o sangue para interpretar o verdadeiro turbilhão de emoções pelo qual passa o seu personagem, dominando com igual desenvoltura todos os aspectos da personalidade da figura dramática, que vão se alterando bruscamente durante o desnrolar do filme: de adolesente tímida a filha rebelde, de prostituta iniciante a piranha devoradora de homens.
  Essa alteração alucinante de nuances dramáticas  pelo qual passa a protagonista é também imitado pela própria estrutura do longa que vai do singelo ao brutal, do drama ao cômico e do bizarro as lágrimas mais veloz do que uma ejaculação precoce.
 As caracterizações dos demais personagens (a maioria também prostitutas e outras categorias de outsiders) correm cabeça-a-cabeça com a complexa interpretação de Déborah Secco, principalmente a da comediante Drica Moraes no papel de uma virulenta e ríspida cafetina, que comanda o seu bordel com mão de ferro. Todas os trejeitos, modos, gírias e dramas particulares típicos das garotas de programa também são retratados e revelados no filme   com desconcertante realismo, o que evidencia a apurada pesquisa que os realizadores  do longa devem ter feito no mundo (e no submundo) da prostituição.
 O desenho de produção também  mostra com extrema fidelidade e detalhamento, todos os ambientes barra-pesada que servem de cenário para o filme desde o prostíbulo vagabundo aonde a protagonista inicia a sua carreira de "vida fácil", passando pelo suntuoso apartamento em sua fase de acompanhante de luxo sedenta por fama e riqueza, chegando até ao repugnante inferninho, aonde Bruna despenca em sua decadência quando se torna uma cocainômana inveterada.
 Resumindo: "Bruna Surfistinha" é um filme que segue o  mesmo padrão de qualidade da maioria das produções nacionais desde a retomada: direção criativa, elenco afiado, texto bem escrito e uma ousadia visual digna de cinema de primeiro mundo.
 Outro aspecto legal desta obra é a sua trilha sonora,  ao invés de, como na maioria dos filmes brasileiros recentes com temática urbana agressiva, ter uma trilha sonora entupida com hip-hops enjoativos e insuportáveis funks, "Bruna Surfistinha" apresenta uma trilha quase que predominantemente "rocker", aonde  bandas clássicas do gênero como "The Zombies" e "Rolling Stones" se alternam com outras mais recentes: (Holger, Radiohead, etc).
  O filme também parece querer subliminarmente ( ou talvez até inconscientemente) comentar o impacto radical que as novas tecnologias de informação podem provocar nas vidas de pessoas comuns nestes tempos de "Wikileaks" e de quando "simples" sites de relacionamentos provocam insurreições e derrubam governos por todo o oriente médio, tempos em que um simples toque em um teclado de computador pode transformar radicalmente uma vida, tanto para o bem, quanto para o mal.
 A personagem principal de "Bruna Surfistinha" é baseado no livro autobiográfico "O Doce Veneno Do Escorpião" escrito pela ex-garota de programa e ex-atriz pornô Raquel Pacheco, que se tornou uma celebridade nacional, digna de atrizes globais, ao começar a postar em seu blog as suas experiências sexuais com seus clientes.
  E são os desbafos da protagonista em seu cyberdiário (aonde escancara todas as parafilias e hipocrisias de seus clientes, compostos em sua grande maioria, por respeitáveis homens de negócios) que costuram, de forma inventiva, praticamente todas as cenas do filme.
   A sequência  final de "Bruna Surfistinha" é de uma interatividade impressionante com o espectador, que se assistiu ao filme com um mínimo de atenção perceberá que acabou de ver não uma história sexy sobre uma mulher vulgar, mas sim uma saga sobre amizade, tristeza, amor e superação, protagonizada por uma mulher decidida que teve a coragem de penetrar na entrada do túnel abissal do lado escuro da alma humana (a sua própria e a de  alheios) e emergir do outro lado viva e ainda mais forte do que antes.

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