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O CINEMA INDOMÁVEL DE MARTIN SCORSESE

 CINEMA EM ESTADO PURO E BRUTO!
 Acredito que não exista outra forma de se iniciar qualquer crítica sobre o clássico veemente de Martin Scorsese, Touro Indomável (Raging Bull, EUA, 1980), do que a frase acima.
 Já disseram que os artistas desovam as suas melhores obras quando estão frustrados, desesperados, coléricos, no limite...
 Talvez seja por estes, ou por algum outro motivo ainda além da comprenssão humana, que Scorsese presenteou os cinéfilos com algo tão profundo, rico, belo e horripilante quanto a própria vida como Raging Bull.
 O cineasta havia decidido que Raging Bull seria o seu canto de cisne, por motivos que este que vos escreve ainda não conseguiu entender claramente. Scorsese nasceu no lado podre e selvagem da maior cidade do mundo, Nova Iorque, aonde a única forma de salvação dos menos favorecidos para escapar de um mundo dominado por assassinos, marginais e policiais corruptos era se entregando a um catolicismo fervoroso e a proteção das igrejas. Scorsese, porém, nunca se decidiu entre a adrenalina, o poder e os prazeres profanos oriundos do mundo do crime ou pela redenção, pureza espiritual, contemplação e, também, o poder proporcionado pela igreja católica.
 Talvez, para não sucumbir a nenhum destes dois lados, Marty acabou se tornando um diretor de cinema. Assim o seu corpo físico estaria livre do dilema entre escolher entre o céu e o inferno. Contudo a alma de Scorsese seguiu fascinada e dilacerada tanto pelo sagrado, quanto pelo profano.
 Como se isso ainda não bastasse, a juventude de Scorsese e a sua escolha profissional transcorreram durante um dos períodos mais sediciosos e ambíguos da história norte-americana, os anos 1960 e começo dos 1970, período marcado a ferro e fogo na alma do povo americano por guerras, contradições e revoluções de todos os tipos, uma época em que o próprio Estados Unidos viveram bifurcado entre o céu e o inferno. Para completar, Scorsese (como vários de sua geração) se tornou um adepto de drogas pesadas.
  Creio que tenha sido o caldeirão na mente de Scorsese aonde tudo isso ferveu que o fez querer implodir a sua carreira e que também tenha sido neste mesmo caldeirão que ele deu vida a Touro Indomável.
  Um dos grandes clássicos do cinema norte-americano de todos os tempos, Touro Indomável costuma se revezar com o seminal cult cyberpunk, Blade Runner, de Ridley Scott, nos topos das listas dos melhores filmes da década de 1980.
  Com base na fascinante e tempestuosa trajetória do boxeador nova-iorquino Jake La Motta narrada pelo próprio (em parceria com Joseph Carter e Peter Savage) em um romance autobiográfico, Scorsese transporta para o universo explosivo e sangrento dos ringues de boxe toda a complexidade dos dramas shakesperianos, dissecando sem nenhuma sutileza toda a paixão, força, violência e desgraça que são imanentes a todos nós, pobres seres humanos e que podem tanto nos levarem para o topo da glória, quanto para, no instante seguinte, nos jogarem nos abismos da degradação humana.
 A exemplo dos personagens de Hemingway --- homens fortes,  rudes e implacáveis, mas com as almas feitas em frangalhos pelas vicissitudes humanas ---, La Motta é um guerreiro frio e calculista, um bárbaro urbano cuja armadura de truculência esconde toda a sua carência afetiva e dificuldade em se relacionar com o mundo e as pessoas a sua volta. Um homem que espezinha sadicamente o irmão que o idolatra justamente porque não consegue demostrar de forma altruísta o quanto o ama e necessita deste. Um marido que de tão faminto pelo amor de sua esposa, desenvolve por esta um ciúme brutal e possessivo que beira a psicopatia, que esmurra a amada com a mesma força dos socos que desfere em seus adversários no ringue para, logo em seguida, se ajoelhar aos pés desta como uma criança desesperada implorando por perdão, por compreensão, demonstrando que no fundo o  mais ferido e vitimado pelas suas explosões de violência não são o seu irmão e a sua esposa, mas ele próprio. Desta forma La Motta explicita, não apenas a sua, mas a fragilidade de quase todos os homens (pois Ranging Bull é um filme essencialmente masculino, porém nunca machista) que se escamoteia por detrás  de quilos de músculos imbatíveis e ossos inquebráveis.
 São estas metáforas amargas e extremamente abrangentes que tornam Raging Bull um filme não sobre boxe e pugilistas, mas um filme sobre a própria vida, sobre pessoas comuns como eu e você.
 Como os mais célebres exemplos tanto do cinema quanto da literatura, Raging Bull é uma obra de caráter universal.
   Jake La Motta nos mostra que as nossas próprias vidas são ringues de boxe, arenas de gladiadores cuja  batalha é diária e incessante, aonde um único movimento em falso, um único golpe desferido ou sofrido podem afastar para sempre de nós as pessoas e aquilo que mais amamos e cobiçamos, nos marcando com cicatrizes profundas que carregaremos para o resto de nossa existência e fazendo a diferença entre a vida e a morte.
 Como de praxe, Martin Scorsese transforma este épico mundano em um espetáculo visual atordoante, uma explosão de som e fúria para deixar cinéfilo babando, se perguntando embasbacado: " Como foi que o Scorsese conseguiu fazer aquilo"?
 A começar pela própria abertura do filme, com o personagem de De Niro ensaiando movimentos de boxe que se assemelham a um balé em um ringue vazio e esfumaçado com flashes de máquinas fotográficas explodindo ao fundo através da lente de uma câmera ultra-lenta em uma película preto & branco e ao som da melancólica e belíssima trilha do ex-roqueiro Robbie Robertson. É realmente de provocar arrepios.
 Aliás, quase todo o longa foi rodado em P&B com uma fotografia que parece ter sido levemente envelhecida, talvez para passar a sensação de que o filme não apenas "se passasse" na década de 40, mas que houvesse realmente sido realizado nesta época.
 Apesar de não ser classificado como um filme noir ou neo-noir como outras duas produções de Scorsese, A Ilha do Medo e Táxi Driver, a película P&B, a ambientação nos anos 1940, os cenários esfumaçados e decadente, o forte contraste entre luz e sombra de algumas sequências e a ambiguidade radical dos personagens fazem de Raging Bull um legítimo produto hard-boiled.
 A direção de arte noir, aliás, com arquiteturas externas e internas de prédios, casas, boates, ringues de boxe e bares decadentes típicos da década de Phillip Marlowe é tão obsessivamente detalhada que as vezes parece que estamos olhando para uma pintura em um quadro e não para algo físico.
 Já as sequência de luta são um show a parte e somente elas já dariam um filmaço. As câmeras de Scorsese e do fotógrafo Michael Chapman acompanham todos os movimentos dos boxeadores dentro do ringue como se fossem suas próprias sombras com tomadas e cortes  exatos e pontos de vista que ficam mudando incessantemente de um lutador para o outro. A violência em câmera lenta, com close-ups extremos do sangue jorrando de feridas abertas, provocam incômodo até no mais durão dos espectadores.
 O filme recebeu oito indicações para o Oscar e venceu duas: uma de melhor ator para De Niro (em um  dos prêmios da categoria mais merecidos de todos os tempos) e outra para a edição (precisa como um relógio suíço) de Thema Shoonmaker (esposa do grande e falecido cineasta Michael Powell).
  Raging Bull é um daqueles filmes que mudam a vida da gente para sempre, nos maravilhando e nos fazendo refletir. E é principalmente um daqueles filmes que fazem com que o cinema seja realmente reconhecido como a sétima arte.

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